terça-feira, 5 de abril de 2016

Revivendo o anseio e as feridas da criança infeliz

Se aprender a observar seus problemas e sua não-realização e se seguir o processo de expor suas emoções, você obterá uma grande percepção intuitiva. Mas, meus amigos, será necessário reviver o anseio e as feridas da criança chorona que você foi uma vez, embora fosse também uma criança feliz. Sua felicidade pode ter sido válida e livre de decepções frente a si mesmo. Pois é possível ser feliz e infeliz ao mesmo tempo. Você pode estar agora perfeitamente consciente dos aspectos felizes de sua infância, mas aquilo que o feriu profundamente e aquele algo a que você aspirou intensamente — sem nem mesmo saber bem o quê — disso você não estava consciente. Você assumiu a situação como definitiva. Você não sabia o que estava faltando ou mesmo que houvesse algo faltando. Essa infelicidade fundamental precisa voltar à consciência agora, se você de fato deseja continuar seu desenvolvimento interior. Você tem de reviver a dor aguda que uma vez experimentou mas que escondeu de sua visão. Agora você precisa contemplar essa dor com a consciência da compreensão que adquiriu. Somente agindo assim é que você compreenderá o valor da realidade dos seus problemas atuais e passará a vê-los sob sua verdadeira luz. 

Mas, como você pode reviver mágoas tão antigas? Só existe um jeito, meu amigo. Considere um problema do momento. Remova dele todas as camadas sobrepostas de suas reações. A primeira e mais importante camada, a que está mais à mão, é a da racionalização, aquela que "prova" que os outros, ou as situações, é que são os culpados; por ela, não são seus conflitos mais íntimos que fazem você assumir a atitude errônea com relação ao problema real com que você se defronta. A camada seguinte pode representar a raiva, o ressentimento, a ansiedade, a frustração. Sob qualquer dessa reações você encontrará a ferida produzida pela falta de amor. Ao experimentar a mágoa de não ser amado em sua situação presente, essa ferida reacenderá o sofrimento da infância. Ao mesmo tempo que enfrenta a mágoa presente, olhe para trás e tente reconsiderar a situação com seus pais: o que eles lhe deram, como você se sentiu realmente com relação a eles. Você perceberá que em vários sentidos lhe faltou alguma coisa que nunca viu claramente antes — você não quis ver. Você se dará conta de que isso deve tê-lo magoado quando era criança, mas pode ter esquecido essa mágoa num nível consciente. Acontece, porém, que você não esqueceu, absolutamente. A ferida do seu problema atual é exatamente a mesma ferida de então. Faça isso, reavalie sua ferida atual, comparando-a com a mágoa da infância. Você verá claramente que se trata de uma só ferida e da mesma ferida. Por mais verdadeira e compreensível que seja sua dor presente, ela é a mesma da infância. Num segundo momento, você perceberá como contribuiu para dar origem ao sofrimento presente devido ao seu desejo de corrigir a dor da infância. Mas no começo, você apenas precisa sentir como os dois sofrimentos são semelhantes. Isto, porém, exige um grande esforço, porque existem muitas emoções que encobrem a dor do presente e também a do passado. Você não compreenderá nada nesse sentido sem antes ter êxito na cristalização da dor que está vivendo agora. 

Uma vez que você sincronize esses dois sofrimentos e perceba que são um só e o mesmo, o passo seguinte será muito mais fácil. Então, percebendo o padrão repetitivo em suas várias dificuldades, você aprenderá a reconhecer as semelhanças entre seus pais e as pessoas que lhe causaram sofrimentos ou que o estão magoando agora. O fato de experimentar essas semelhanças emocionalmente o fará avançar no caminho para a dissolução desse conflito básico. A mera avaliação intelectual não produzirá nenhum benefício. Para ser frutífero e produzir resultados efetivos, o processo de renunciar à recriação deve ir além do mero conhecimento intelectual. Você deve permitir-se sentir o sofrimento de certas não-realizações de agora e também da sua infância e comparar as duas até que, como duas tomadas fotográficas, elas gradualmente se dirijam para o foco e se tornem uma. Através da vivência do sofrimento de agora e do passado, lentamente você chegará a compreender como pensou que tinha de escolher a situação atual porque em seu íntimo você absolutamente não admitia a "derrota". Quando isso acontecer, a percepção intuitiva que você obtém e a experiência que sente exatamente como a exponho aqui, lhe permitirão dar o passo seguinte. 

É desnecessário dizer que muitas pessoas não têm a consciência de nenhum sofrimento, passado ou presente. Elas prontamente o afastam de sua visão. Seus problemas não aparecem como "sofrimento". Para elas, a primeira coisa a fazer é conscientizar-se de que esse sofrimento existe e que fere infinitamente mais enquanto permanecerem inconscientes dele. Muitas pessoas têm medo desse sofrimento e acreditam que por ignorá-lo podem fazê-lo desaparecer. Tais pessoas escolheram essa forma de alívio apenas porque seus conflitos se tornaram grande demais para elas. Quão maravilhoso é escolher esta opção com a sabedoria e a convicção de que um conflito oculto, a longo prazo, causa tanto malefício quanto um conflito exposto. Então, elas não terão medo de desenterrar a emoção verdadeira e, até na experiência temporária do sofrimento, sentirão que naquele momento ele se transforma num sofrimento saudável, livre de amargura, de tensão, de ansiedade e de frustração.

Há também os que toleram o sofrimento, mas de uma maneira negativa, sempre esperando que ele seja aliviado de fora. De certo modo, essas pessoas estão mais próximas da solução porque será mais fácil para elas perceber como o processo infantil funciona. O exterior é o pai/mãe ofensor, ou ambos os pais, projetado em outros seres humanos. Elas apenas precisam redirecionar o enfoque para seus sofrimentos. Elas não têm necessidade de desenterrá-los.

COMO DEIXAR DE RECRIAR?

Só depois de experimentar todas essas emoções e depois de sincronizar o "agora" e o "então" é que você se conscientizará do modo como procurou corrigir a situação. Você perceberá a tolice do desejo inconsciente de recriar a mágoa da infância, sua inutilidade frustrante. Você passará a avaliar todas as suas ações e reações com essa nova compreensão e percepção intuitiva, o que lhe permitirá libertar-se de seus pais. Sua infância ficará realmente para trás e outro comportamento assumirá o lugar anterior, um comportamento novo, interior, infinitamente mais construtivo e recompensador para você e para os outros. Sua tentativa de controlar a situação que não conseguiu controlar quando criança, deixará de existir. Você prosseguirá a partir do ponto em que se encontra, esquecendo e perdoando sinceramente dentro de você, sem nem sequer pensar que agiu assim. Não haverá mais necessidade de ser amado como quando você era criança. Primeiro, surge a percepção de que é isto que você ainda quer, mas logo você deixa de buscar esse tipo de amor. Por não ser mais uma criança, sua procura será a de um amor diferente, oferecendo-o em vez de esperá-lo. Sempre se deve enfatizar, entretanto, que muitas pessoas não têm consciência de que o esperam. O fato de a expectativa infantil, inconsciente, ter sido tantas vezes frustrada, fez com que se auto-induzissem a desistir de toda expectativa e desejo de amor. Obviamente, não há nisso verdade nem proveiro: trata-se apenas de um extremo errôneo. 

É da maior importância que todos vocês trabalhem este conflito interior, para que obtenham uma nova visão e uma maior clareza na busca de si mesmos. Inicialmente, pode acontecer que essas palavras provoquem em vocês apenas um lampejo ocasional, uma emoção que se irradia momentaneamente, mas devem ser de ajuda e abrir uma porta que os ajude a se conhecerem melhor e que os faça chegar a uma avaliação de sua vida a partir de uma visão mais realista e madura.

Eva Pierrakos em, O Caminho da Autotransformação

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"É porque se espalha o grão que a semente acaba
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"Acredito que o maior presente que alguém me pode dar é ver-me, ouvir-me, compreender-me e tocar-me. O maior presente que eu posso dar é ver, ouvir, entender e tocar o outro. Quando isso acontece, sinto que fizemos contato" — Virginia Satir

"A mente inocente é aquela que não pode ser ferida. Uma mente sem marcas de ferimentos recebidos — eis a verdadeira inocência; temos cicatrizes no cérebro e, com elas, queremos descobrir um estado mental sem ferimento algum. A mente inocente não pode ferir-se (isto é, sofrer ofensa), porque nunca transporta um ferimento de dia para dia. Não há, pois, nem perdão, nem lembrança.[...] A mente em conflito não tem nenhuma possibilidade de compreender a Verdade" — Krishnamurti