quarta-feira, 20 de abril de 2016

É possível viver sem ódio, ciúme, inveja, ansiedade, medo ou cólera?


O medo, o prazer, o sofrimento, o pensamento e a violência estão relacionados entre si. Em maioria encontramos prazer na violência, em não gostar de alguém, de odiar uma dada raça ou grupo de pessoas, em nutrir sentimentos hostis para com os outros. Mas, no estado mental em que a violência desapareceu completamente, há uma alegria muito diferente do prazer da violência, com os seus conflitos, rancores e temores. 

Podemos penetrar a raiz da violência e dela nos livrarmos? Do contrário, viveremos batalhando perenemente uns com os outros. Se é dessa maneira que você deseja viver — e aparentemente a maioria das pessoas o deseja — continuai então assim; se você diz: "Ora, sinto muito, mas a violência nunca terá fim, jamais acabará" — nesse caso você e eu não temos a possibilidade de comungar, uma vez que você se emparedou; mas se você diz que talvez exista uma diferente maneira de viver, teremos a possibilidade de comunhão. 

Consideremos, pois, juntos — aqueles de nós que têm a capacidade de comungar — se existe alguma possibilidade de acabarmos totalmente com qualquer forma de violência existente em nós mesmos, e ao mesmo tempo vivermos neste mundo monstruoso e brutal. Acho que é possível. Não desejo ter em mim a mais leve sombra de ódio, de ciúme, de ansiedade ou medo. Desejo viver completamente em paz. Mas isso não significa que desejo morrer. Desejo viver nesta terra maravilhosa, tão cheia de vida, riqueza e de beleza! Desejo olhar as árvores, as flores, os rios, os prados, as mulheres, as crianças, e ao mesmo tempo viver completamente em paz comigo mesmo e com o mundo. Que posso fazer?

Se soubermos olhar a violência, não só exteriormente, na sociedade — guerras, rebeliões, antagonismos nacionais e conflitos de classes — mas também em nós mesmos, talvez então tenhamos a possibilidade de transcendê-la. 

Este é um problema muito complexo. Há séculos e séculos que o homem é violento; as religiões, em todo o mundo, tentaram amansá-lo, e nenhuma delas foi bem-sucedida. Assim, se vamos examinar essa questão, devemos, acho eu, encará-la com toda a seriedade, porque esse exame nos levará a um domínio completamente diferente. Mas se desejamos meramente entreter-nos intelectualmente com o problema, não iremos muito longe.[...]

O problema da violência é exterior ou interior? Você deseja resolver o problema no mundo exterior, ou está questionando a violência em si, tal como existe em você? Se, interiormente, em você mesmo, está livre da violência, surge ogo a pergunta: "Como posso viver num mundo cheio de violência, ganância, avidez, inveja, brutalidade? Não serei destruído?" — Esta é a pergunta que inevitável e invariavelmente se faz. Fazendo tal pergunta, não me parece que você esteja vivendo realmente em paz. Se você vive pacificamente, não tem problema de espécie alguma. Você pode ir para a prisão se se recusar a se alistar no exército, ou ser fuzilado se se recusar a combater; mas isso não é problema: sereis fuzilado. É extremamente importante compreender isso. 

Estamos tentando compreender a violência como um fato, não como uma ideia; como um fato existente no ente humano, e o ente humano sou eu. E, para examinar o problema, eu tenho de ser completamente vulnerável, aberto a ele. Tenho de desmascarar a mim mesmo; não há necessidade de me desmascarar diante de você, porque talvez isso não lhe interesse — mas devo me achar num estado mental que queira levar o exame completamente até o fim, sem me deter em nenhum ponto, dizendo "não irei mais adiante". 

Ora, devo ver bem claramente que sou um ente humano violento. Tenho experimentado a violência na cólera, nos apetites sexuais, no ódio, no criar inimizades, no ciúme, etc. Tendo experimentado, conhecido a violência, digo de mim para mim: "Desejo compreender este problema integralmente, e não apenas um fragmento seu, conforme se expressa na guerra; quero compreender essa agressividade existente no homem e que também existe nos animais, dos quais faço parte". 

Violência não é meramente assassinar. Há violência no uso de uma palavra áspera, num gesto de desprezo, na obediência motivada pelo medo. A violência, portanto, não é apenas a carnificina organizada, em nome de Deus, da sociedade, da pátria. A violência é muito mais sutil e profunda, e nós queremos investigar as suas últimas profundezas. 

Quando você se denomina indiano, ou maometano, ou cristão, ou europeu, ou o que quer que seja, está sendo violento. Você sabe por quê? Porque você está se separando do resto da humanidade. Quando você se separa, pela crença, pela nacionalidade, pela tradição, gera-se violência. Assim, o homem que deseja compreender a violência, não deve pertencer a nenhuma nação, nenhuma religião, nenhum partido político ou sistema partidário; o que deve interessá-lo é a compreensão total da humanidade.  

Pois bem; há duas escolas principais de pensamento que se interessam pela violência. Uma delas diz: "A violência é inata no homem"; a outra diz: "A violência é o resultado da herança social e cultural do homem". Não no interessa a escola a que você pertence, pois isso não tem nenhuma importância. O importante é o fato de que somos violentos e não a razão desse fato.

Uma das expressões mais comuns da violência é a cólera. Quando atacam minha esposa ou minha irmã, sinto-me justamente encolerizado; quando são atacados a minha pátria, as minhas ideias, os meus princípios, a minha maneira de vida, fico também justamente encolerizado. Sinto também cólera, quando são atacados meus hábitos, as minhas insignificantes opiniões. Se você pisa no meu pé ou me insulta, fio com raiva, ou se você foge com minha mulher sinto ciúme, um ciúme também justo, porque ela é minha propriedade. Todas essas manifestações de cólera são moralmente justificadas. Também se justifica o matar pela pátria. Assim, falando a respeito da cólera, que faz parte da violência, a consideramos em termos de cólera justa e cólera injusta, conforme nossas próprias inclinações ou as pressões do ambiente ou a consideramos como cólera simplesmente? Existe cólera justa? Ou só existe a cólera? Não há influência boa ou influência má — só há influência; mas quando sou influenciado por uma coisa que não me convém, a chamo de má influência. 

Se você protege sua família, sua pátria, um trapo colorido chamado bandeira, uma crença, uma ideia, um dogma, aquilo que quer possuir ou que já tem nas mãos, essa própria proteção denota cólera. Assim, você pode olhar a cólera sem nenhuma explicação ou justificação, sem dizer: "Tenho de proteger o que é meu" ou "Tive razão de me encolerizar" ou "Que estupidez minha, ter me encolerizado"? Você pode olhar a cólera como uma coisa em si? Pode olhá-la de maneira completamente nova, quer dizer, sem defendê-la, nem condená-la? Pode? 

Posso olhá-lo se lhe sou hostil ou se lhe considero uma pessoa excelente? Só posso vê-lo, quando o olho com certo cuidado em que não esteja contida nenhuma dessas coisas. Ora, posso eu olhar a cólera da mesma maneira, o que significa que sou vulnerável ao problema, que não resisto a ele, que estou observando, que estou observando esse extraordinário fenômeno sem nenhuma reação a ele? 

É muito difícil considerar a cólera desapaixonadamente, porquanto ela faz parte de mim, mas é isso que estou tentando fazer. Aqui estou eu, um ente humano violento, não importando se sou preto, se sou moreno, branco ou vermelho. Não importa se herdei essa violência ou se a sociedade a produziu. Só isto me importa: "Se é possível dela me libertar". Me livrar da violência significa tudo para mim. Me é mais importante do que o sexo, o alimento, a posição, porque essa coisa está me corrompendo. Estou me destruindo e destruindo o mundo, e preciso compreender a violência, transcendê-la. Sinto-me responsável por toda a cólera e toda a violência existentes no mundo. Sinto-me responsável, e isso não são meras palavras. Digo para mim mesmo: "Só posso fazer alguma coisa se eu próprio transcender a cólera, a violência, a nacionalidade". E esse meu sentimento de que devo compreender a violência em mim existente me confere uma estupenda vitalidade e paixão para compreendê-la. 

Mas, para transcender a violência, não posso reprimi-la, negá-la, não posso dizer: "Ora, ela faz parte de mim, e está acabado" ou "Eu não a quero". Tenho de enfrentá-la, de estudá-la, de entrar em intimidade com ela, e essa intimidade não é possível se a condeno ou justifico. Entretanto, na verdade, nós a condenamos e justificamos. Por conseguinte, digo "Deixemos, por ora, de condená-la ou de justificá-la". 

Ora bem, se você deseja acabar com a violência, acabar com as guerras, quanta vitalidade, quanto de você mesmo aplica a isso? Não lhe importa que seus filhos pequenos sejam mortos, que seus filhos mais velhos se alistem no exército para serem maltratados e abatidos como reses? Isso não lhe importa? Conservar seu dinheiro? Gozar a vida? Tomar drogas? Não percebe que a violência existente em você está destruindo os seus filhos? Ou você a vê apenas como uma espécie de abstração? 

Bem; se você tem interesse nisso, aplique-se de corpo e alma para compreendê-lo. Não se encoste na cadeira, dizendo: "Está bem; me conte toda a história". Preciso fazer você ver que não se pode olhar a cólera nem a violência com olhos que condenam ou justificam, e que, se a violência não representa para você um problema urgente, não pode afastar aquelas duas coisas. Assim, em primeiro lugar você tem de aprender; tem de aprender a olhar a cólera, a olhar seu marido, sua esposa, seus filhos; te de escutar o político, aprender porque você não é objetivo, porque condena ou justifica. Você tem de aprender que condena e justifica porque isso faz parte da estrutura social em que você vive, faz parte de seu condicionamento como alemão, indiano, negro, americano — ou o que acaso você é por nascimento — com todo embotamento mental resultante desse condicionamento. Para aprender, para descobrir uma coisa fundamental, você precisa de penetração. Se você tem um instrumento obtuso, um instrumento embotado, não pode penetrar profundamente. Assim, o que agora estamos fazendo é aguçando o instrumento, que é a mente — essa mente que se embotou por causa do justificar ou condenar. Você só será capaz de penetrar fundo se sua mente for penetrante como uma agulha e forte como o aço.

De nada serve você ficar encostado e perguntar: "Como chegarei a ter essa mente?" Você tem de desejá-la assim como deseja a sua próxima refeição, e para a ter você deve ver que o que está tornando sua mente embotada e estúpida é esse estado de invulnerabilidade que ergueu muralhas ao redor dela e que faz parte da condenação e da justificação. Se a mente puder se libertar desse estado, você será capaz de olhar, de estudar, de penetrar e, assim, talvez, alcançar um estado totalmente consciente do problema em seu todo.  

Voltemos, pois, ao problema central: É possível erradicarmos a violência em nós existente? É uma forma de violência dizer: "Você não mudou! Por que não mudou?" — Não é isso que estou fazendo. Para mim, nada significa lhe convencer de uma coisa. Trata-se da sua vida, e não da minha. Sua maneira de viver é da sua própria conta. O que pergunto é se é possível a um ente humano que psicologicamente vive não importa em que sociedade, se é possível a esse ente humano se libertar interiormente da violência. Se é possível, esse mesmo processo criará uma nova maneira de viver neste mundo. 

A maioria aceita a violência como modo de vida. Duas guerras medonhas nada nos ensinaram a não ser a levantar mais e mais barreiras entre os seres humanos — entre você e eu. Mas, quanto àqueles que desejam se libertar da violência, o que se deve fazer? Penso que nada se conseguirá por meio da análise, feita por você mesmo ou por um profissional. Poderíamos, talvez, nos modificar ligeiramente, viver um pouco mais sossegadamente, com um pouco mais de afeição, mas isso, por si só, não nos dará a percepção total. Mas eu preciso saber analisar, pois, no processo da análise a mente se torna sobremodo penetrante e é essa capacidade de penetração, de atenção, de seriedade, que dará a percepção total. Ninguém tem olhos capazes de ver o todo num relance; essa clarividência só é possível se podemos ver os detalhes e, depois, saltar

Alguns dentre nós, a fim de se libertarem da violência, se têm servido de um conceito, de um ideal chamado "não violência", e pensamos que, tendo um ideal que seja o oposto da violência — a não violência — podemos nos libertar do fato, da coisa real; mas não podemos. Temos tido inumeráveis ideais, todos os livros sagrados estão cheios deles e, contudo, continuamos violentos; portanto, por que não enfrentar a própria violência e esquecer de todo a palavra? 

Se você deseja compreender a realidade, a isso deve aplicar toda a sua energia. Essa atenção e energia são desviadas quando se cria um mundo fictício, ideal. Assim, você pode banir completamente o ideal? O homem que é realmente sério, que sente a ânsia de descobrir o que é a verdade, o que é o amor, não tem conceito de espécie alguma. Só vive dentro de o que é

Para investigar o fato de sua própria cólera, você não deve pronunciar julgamento sobre ela, porque no mesmo instante em que concebe o seu oposto, a está condenando e, por conseguinte, não pode vê-la tal como é. Quando você diz que não gosta ou que tem ódio de alguém, isso é um fato, embora pareça terrível. Se o olha, se o examina cabalmente, ele deixa de existir; mas se disser: "Eu não devo odiar; devo ter amor no coração", você fica então vivendo num mundo hipócrita, de duplos padrões. Viver com plenitude no momento presente é viver com o que é, o real, sem ideia de condenação ou justificação; então você o compreende tão completamente que fica livre dele. Quando se vê claramente, o problema está resolvido. 

Mas, você pode ver claramente a face da violência, não só fora mas também dentro de você, o que significa que você está totalmente livre da violência, uma vez que não aceitou nenhuma ideologia para, por meio dela, se libertar da violência? Isso exige meditação muito profunda, e não uma simples concordância ou discordância verbal. 

Você acabou de ler uma série de asserções, mas terá compreendido tudo? Sua mente condicionada, seu modo de vida, a inteira estrutura da sociedade em que você vive, lhe impedem de olhar um fato e dele se livrar imediatamente. Você diz: "Vou pensar a respeito disso; vou considerar se é ou não possível me libertar da violência. Vou tentar ser livre". Esta é uma das coisas mais terríveis que se pode dizer: Vou tentar. Não há tentar, não há se esforçar. Ou a gente age ou não age. Você etá admitindo o tempo, com a casa em chamas. A casa está ardendo, como resultado da violência existente no mundo inteiro e em você mesmo, e você diz "Vou pensar nisso. Qual a melhor ideologia para extinguir o fogo?" Quando a casa está em chamas, você discute a cor dos cabelos do homem que traz a água?"

Krishnamurti em, Liberte-se do Passado

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"Acredito que o maior presente que alguém me pode dar é ver-me, ouvir-me, compreender-me e tocar-me. O maior presente que eu posso dar é ver, ouvir, entender e tocar o outro. Quando isso acontece, sinto que fizemos contato" — Virginia Satir

"A mente inocente é aquela que não pode ser ferida. Uma mente sem marcas de ferimentos recebidos — eis a verdadeira inocência; temos cicatrizes no cérebro e, com elas, queremos descobrir um estado mental sem ferimento algum. A mente inocente não pode ferir-se (isto é, sofrer ofensa), porque nunca transporta um ferimento de dia para dia. Não há, pois, nem perdão, nem lembrança.[...] A mente em conflito não tem nenhuma possibilidade de compreender a Verdade" — Krishnamurti