Sabemos que temos de mudar, não só externamente, mas também profundamente, psicologicamente.
As mudanças externas são muitas. Somos forçados a nos ajustar a um certo padrão de atividade, mas, para enfrentarmos os desafios da vida diária, necessitamos de uma profunda revolução. Em geral temos uma ideia, um conceito do que "deveríamos ser", entretanto nunca mudamos fundamentalmente. Ideias ou conceitos sobre o que "deveríamos ser", não nos fazem mudar, em absoluto. Só mudamos quando somos obrigados a fazê-lo e nunca vemos diretamente a necessidade de tal mudança. Quando realmente queremos mudar, se apresenta muito conflito e resistência, e desperdiçamos uma grande soma de energia em resistir e em erguer barreiras.
A mera aquisição de conhecimentos, a mera audição de uma grande quantidade de ideias e de discursos, não produz sabedoria. O que produz sabedoria é a auto-observação, o auto-exame. Para esse exame, devemos estar livres do censor, da entidade que está sempre a avaliar, a julgar, a comparar. Só então se pode olhar, examinar. Só há ação imediata, com aquela observação em que não se criam ideias. O homem vive aparentemente há mais de dois milhões de anos, e a história da humanidade registra um total de quinze mil guerras (nos últimos 5.500 anos) — quase três guerras por ano! Estamos perpetuamente em conflito uns com os outros, tanto externa como internamente. Nossa vida é um campo de batalha e parecemos totalmente incapazes de resolver os nossos problemas. Estamos sempre a adiá-los, evitá-los, ou a procurar resolvê-los de acordo com nossos conceitos, ideias, preconceitos, conclusões. Podemos continuar por mais dois milhões de anos, vivendo dessa maneira superficial, talvez melhor alimentados, com melhores roupas e moradias, porém interiormente estaremos sempre em guerra — com nós mesmos e com nosso próximo. Tal foi sempre o padrão de nossas vidas.
Para a criação de uma boa sociedade, os entes humanos precisam mudar. Você e eu temos de achar a energia, o ímpeto, a vitalidade necessária para operar essa radical transformação da mente, que não é possível se não temos suficiente energia. Necessitamos de muita energia para operar uma mudança em nosso interior; entretanto, desperdiçamos nossa energia em conflitos, resistência, ajustamento, aceitação, obediência. Estamos desperdiçando energia quando estamos procurando nos ajustar a um padrão. Para conservarmos nossa energia, temos de estar atentos a nós mesmos, à maneira como dissipamos energia. Este é um problema secular, pois a maioria dos entes humanos sempre foi indolente. Preferem aceitar, obedecer e seguir. Se nos tornamos conscientes dessa indolência, dessa preguiça tão profundamente arraigada, e procuramos estimular a mente e o coração, a intensidade desse esforço se torna, por sua vez, conflito, que é também dissipação de energia.
Nosso problema — um dos muitos que temos — é como conservar essa energia, a energia necessária para provocar a explosão na consciência — explosão não preparada pelo pensamento, porém que se verifica naturalmente, quando não há desperdício de energia. O conflito, em qualquer forma, em qualquer nível, em qualquer profundidade de nosso ser, representa sempre dissipação de energia. Bem o sabemos, e entretanto aceitamos o conflito como norma de vida. Para compreender a natureza e a estrutura do conflito, temos de considerar a questão da contradição. A maior parte de nossa vida de cada dia é uma fonte de conflito. Se observamos nossa existência diária, nossa vida, percebemos quanto conflito há em nós — o que somos e o que "deveríamos ser", desejos contraditórios, prazeres contraditórios, variadas influências, pressões, tensões, resistência criada por nossas ânsias e apetites. Aceitamos o conflito como parte de nossa existência. Por que vivemos em conflito? Nesse mundo moderno, e levando a vida que levamos, temos possibilidade de viver sem conflito? Isso significa viver sem contradição.
Ao se fazer uma tal pergunta, ou ficamos esperando uma resposta, uma explicação, ou nos tornamos conscientes da natureza de nossas contradições e de nosso conflito. Por "estar consciente" entendo observar, examinar, sem julgar, sem escolher — perceber nossa vida de cada dia e seus conflitos; só isso. Começaremos, etão, a compreender a estrutura da contradição. Sabemos, em geral, que estamos vivendo em contradição, reprimindo uma coisa e seguindo outra, o oposto; ou tratando de esquecer completamente nossa contraditória existência e de viver superficialmente, a fugir. Mas, quando nos tornamos conscientes da contradição, a tensão se torna muito maior, porque não sabemos como resolver esse conflito, essa batalha incessante que se trava dentro de cada um de nós, de cada ente humano. Incapazes, que somos, de resolvê-la, esclarecê-la, a tensão se torna muito maior, ocasionando neuroses e psicoses. Entretanto, se nos tornamos conscientes, sem escolha, dessa contraditória natureza de nosso existir, se ficamos simplesmente a observar o conflito, sem o desejo de resolvê-lo e sem parcialidades — observar simplesmente — descobriremos que existirá sempre conflito enquanto o "observador", o "censor", for diferente da coisa que está olhando. É esta, a meu ver, a raiz do conflito. Oxalá pudéssemos compreender isso não filosoficamente, não por meio de explicações, de aceitação, porém pela simples observação!
Consideremos, por exemplo, a solidão, esse sentimento de isolamento que cada um de nós conhece. Ao nos tornar conscientes dele, tratamos de fugir — para as igrejas, para os museus; vamos ouvir música, ouvir rádio; vamos beber, fazer tantas outras coisas... E a tensão vai aumentando. Lá está o fato: nos vemos terrivelmente sós, isolados, sem relação com coisa alguma. Incapazes, que somos, de compreender o fato, de lhe enfrentar, de entrar em contato direto com ele — fugimos. E a fuga, como é natural e evidente, é um desperdício de energia, porque o fato continua existente.
Ao se tomar conhecimento do fato, descobre-se um observador olhando a solidão como coisa diferente do observador.[...] Se você se tornar consciente da solidão e a observar, notará que a olha como coisa diferente do observador (você): a solidão não é você; o observador difere da coisa observada e, por essa razão, se esforça por superá-la ou dela fugir. Começa a fazer perguntas sobre o que deve fazer, o que não deve fazer, como dissolver a solidão. Mas o fato real é que o observador é a coisa observada e, enquanto houver essa separação entre observador e coisa observada, haverá necessariamente conflito.
Vejamos outro esforço que costumamos fazer. Há desejos contraditórios — cada desejo a nos puxar numa direção diferente. Trava-se uma batalha constante. Por pouco que estejamos vigilantes, atentos, sabemos o que está ocorrendo em nossa consciência: o observador escolhe o desejo que deverá prevalecer, que deverá ser satisfeito (ou, se não está atento, trata de satisfazer um dado desejo) e, desse modo, gera conflito.
Há também conflito quando não compreendemos o prazer. Estamos considerando o prazer, sem nenhum propósito puritano de lhe opor resistência, de evitá-lo, de dissolvê-lo ou dominá-lo. Se tentamos dominar o desejo, o prazer, qualquer fato real, criamos conflito, resistência contra ele. Mas, tão logo começamos a compreender a estrutura do prazer, a maneira como opera nossa mente, nosso cérebro, nossos desejos, em relação ao prazer, começamos também a descobrir que sempre que há prazer, há dor. Ao se compreender isso, não intelectual ou verbalmente, porém de maneira real, ao se perceber o fato verdadeiro, não haverá mais nenhum impulso para evitar o prazer; apresenta-se aquele estado real que se verifica ao ser compreendida a natureza e a estrutura do prazer. Estamos falando da necessidade de reunirmos todas as energias, a fim de realizarmos uma revolução radical na própria consciência; pois temos a necessidade de uma mente nova, precisamos olhar a vida de maneira diferente. Para provocarmos essa explosão, temos de descobrir como estamos desperdiçando nossas energias. O conflito é dissipação de energia. A resistência ao prazer ou a aceitação do prazer é também desperdício de energia.
[...] Você descobrirá, ao começar a aprender a respeito de si mesmo — não analiticamente, examinando o que você é camada por camada, por isso requer um tempo imenso — descobrirá que só é possível se tornar consciente da totalidade do seu ser quando se compreende que toda a consciência está limitada, condicionada. Quando você percebe isso, quando você dá total atenção a esse condicionamento, então a análise se torna inteiramente inútil. Não sei se você já viu, por si mesmo, a verdade relativa a sua mente, a seus pensamentos e sentimentos. Ela pode ser vista imediatamente. Mas, repito, isso requer sensibilidade, e não conhecimentos ou disciplina. Ser sensível — não num certo sentido, como o artista, porém totalmente sensível, consciente de tudo que o cerca, das cores, das árvores, dos pássaros, de seus próprios pensamentos e sentimentos — torna a mente sobremodo alertada, penetrante, clara. Pode-se então fazer frente aos problemas da existência. Só existe um problema quando lhe oferecemos solo para se enraizar. Mas, se compreendemos o problema imediatamente, ele deixa de existir. Quando a reação é adequada ao desafio, não existe problema. Só quando não somos capazes de reagir adequadamente ao desafio, há problema.
Considere o problema do medo — não o problema de como nos livramos dele, do que se deve fazer em relação a ele. Na maioria de nós, existe constante medo. Ou temos consciência dele, ou temos temores inconscientes, profundamente arraigados, com os quais nunca entramos em contato. Temos ideias, imagens, em relação ao medo, porém nunca estamos realmente em contato com o fato. Por mais intimidade que tenhamos com uma pessoa — a isso chamamos "estar em relação" — a relação que existe é entre as imagens que ambas as pessoas têm uma da outra. É isto que chamamos "estar em relação": uma imagem em contato com outra imagem. Da mesma maneira, nunca entramos em contato com o medo real. O medo é um sinal de perigo. Quando nos deparamos com um perigo físico — uma serpente, um precipício — há ação imediata. Não há conclusão, não há refletir sobre o caso. O corpo reage imediatamente. Mas, há perigos psicológicos de que não estamos conscientes e, por conseguinte, não há ação imediata.
Temos numerosos temores, e um dos maiores é o medo da morte. Quando somos sensíveis à vida, tomamos consciência dessa coisa extraordinária que se chama "morte". Não sabemos entrar em contato com ela, porque a tememos. Para o encontro com isso que chamamos "morte", temos primeiramente de nos libertar do medo — desse medo constante ao desconhecido, ou, melhor, de nos separarmos do conhecido, das coisas que conhecemos: nossas experiências, nossas lembranças, nossa família, nosso saber, nossas atividades. É disso que temos medo, e não propriamente da morte. Sabemos que há a morte. Nos consolamos com a reencarnação, a ressurreição, com várias formas de crença; ou racionalizamos a morte, dizendo: "Ora, ela é inevitável, e a vida é toda de aflições"; ou ainda: "A vida nos proporciona muitos deleites; tratemos de aproveitá-la". Mas se você deseja realmente compreender a questão da morte, que é de fato uma coisa extraordinária, não só temos de compreender o viver, mas também compreender o medo, porque, quando compreendemos o viver, verificamos que o viver e o morrer estão estreitamente ligados entre si; não são duas coisas diferentes. Não podemos viver se temos medo, se estamos constantemente batalhando, lutando para nos preencher, para, no fim, nos vermos frustrados e descobrirmos em nós mesmos uma imensa solidão e insuficiência.
Tal é a nossa vida; queremos nos preencher, "nos realizar", "vir a ser". O pensamento intervém e trata de evitar a morte, afastá-la para longe, se aferrar às coisas que conhece. Não sabemos o que é o viver. O que chamamos "viver" é uma existência lastimosa, uma horrorosa confusão, uma batalha entrecortada de ocasionais lampejos de alegria, de extraordinários prazeres; contudo, a maior parte de nossa vida é tão superficial e insípida, que não sabemos o que é viver. Mas se morrêssemos para todas as coisas que o pensamento criou dentro de nós, morrêssemos para nossos prazeres, nossas lembranças, nossos temores — encontraríamos então um viver diferente. Este viver nunca está distanciado da morte; mas, para alcançá-lo, necessitamos de paixão,de intensidade, de energia, para aprendermos a respeito de nós mesmos, a respeito da morte, a respeito do medo, porque no momento em que começamos a aprender tudo isso, desaparece o medo. Não podemos aprender, se não sabemos observar. Afinal, aprender a respeito da morte é uma coisa verdadeiramente extraordinária, porque existe a morte física. O organismo se esgota, por velhice ou doença. A mente já não é então capaz de rápida percepção, porque nos deixamos impor uma enorme carga de condicionamento. Quando estamos doentes, quando as células cerebrais estão cansadas, já não podemos aprender e, então, infelizmente, vivemos de crenças e de esperanças — e por esse caminho não há saída. Mas, se nos tornamos conscientes de nossas vidas, da maneira como vivemos, de nossos pensamentos e sentimentos, dos prazeres que constantemente buscamos, então, nessa compreensão, as coisas que estamos tão profundamente apegados caem por si. Morremos então todos os dias. De outro modo, nunca há nada novo.
Essa é, afinal de contas, a mente religiosa, pois religião não são as crenças, os dogmas, os rituais, as seitas, a propaganda que se faz há dois mil ou dez mil anos; isso, absolutamente, não é religião. Somos escravos da propaganda — não só do comerciante, mas também do sacerdote. A religião é uma coisa de todo diferente. Para se descobrir o verdadeiro, descobrir se existe isso a que o homem chama seu Deus — o Desconhecido — temos de morrer para o conhecido, pois, de contrário, não poderemos nos encontrar com essa coisa inefável que o homem busca há milhares e milhares de anos. O homem, o pensamento inventou um conceito sobre o que é Deus e o que não é. Crê e descrê, conforme seu condicionamento. O comunista, o autêntico comunista, não crê. Para ele, só o estado existe. Provavelmente, com o tempo, venha a endeusar Lenine ou outro. E há os que foram condicionados para crer. Ambos são iguais, o crente e o não-crente. A fim de descobrirmos se existe alguma coisa além daquilo que o pensamento construiu, temos de negar tudo — dogma, crença, esperanças, temores. Isso afinal não é muito difícil, porque, quando queremos aprender, colocamos de lado todos os absurdos que o homem criou com o seu medo.
Quando termina efetivamente o pensamento, quando morremos para o pensamento, então surge algo inteiramente diferente, uma dimensão diferente, dimensão que não pode ser explicada, colocada em palavras, que nada tem em comum com a crença, o dogma e o medo. Não é uma palavra. Aquele verbo não pode tornar-se carne e, para ser descoberto, deve deixar de existir o experimentador, o observador, o censor. Foi por isso que dissemos, no começo, que temos de compreender o conflito, e que haverá conflito enquanto existir observador e objeto observado; pois esta é a raiz do conflito. Quando digo "preciso compreender", ou "Tenho medo", o EU julga-se separado do próprio medo. Em verdade não está separado dele. O medo é o EU; os dois são inseparáveis. Quando o observador é o objeto observado, quando o pensador, a fonte do pensamento, deixa de existir, verifica-se, então, que o medo, em qualquer forma, deixou também de existir.
Nisso há uma concentração de energia. Essa energia explode e surge o novo — o novo irreconhecível. Quando reconhecemos uma coisa, essa coisa não é nova. É uma experiência que já tivemos. Por conseguinte, não é nova. As maravilhosas experiências e visões dos santos e das pessoas religiosas são projeções de coisas velhas, projeções de suas mentes condicionadas. O cristão vê o seu Cristo, porque foi condicionado pela sociedade em que vive, em que cresceu.
Enquanto houver "experimentador" e a cosia que ele vai "experimentar", nesse estado não existirá nenhuma realidade, porém somente conflito. Só quando deixa de existir o experimentador, pode surgir aquela coisa que o homem sempre buscou. Em nossa vida, estamos sempre buscando — buscando a Felicidade, buscando Deus, buscando a Verdade. Não podemos achá-lo por meio de busca, porém, tão-só, quando cessa a busca, quando a pessoa é a luz de si própria. Para se ser a luz de si próprio, deve haver paixão e intensidade ardentes. Essa paixão não é uma coisa mansa. Com ela nasce — de toda esta agitação, aflição, confusão e desespero — a revolução, a mutação interior. Só uma mente nova pode encontrar-se com aquilo que se chama Deus, a Verdade, ou o nome que você preferir. Mas, o conhecido não pode conhecer o desconhecido, e nós somos resultado do desconhecido. Tudo o que o conhecido — o pensamento — fizer afastará para mais longe ainda o desconhecido. Só quando o pensamento compreendeu a si próprio e se tonou quieto, pode haver a compreensão de todo esse processo do pensamento, prazer e medo. Isso é meditação. Não é prática, não é disciplina ou o ajustamento que torna a mente quieta. O que a torna verdadeiramente silenciosa é a compreensão de si própria, de seus pensamentos, seus desejos, suas contradições, seus prazeres, seus apegos, sua solidão, seu desespero, sua brutalidade, sua violência. Dessa compreensão nasce o silêncio, e só a mente silenciosa pode perceber, pode ver realmente o que é.
Jiddu Krishnamurti em, Encontro com o Eterno
10 de maio de 1966
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