quarta-feira, 27 de abril de 2016

O que nos dará uma mente não adulterada?

A mente religiosa (não adulterada) é aquela que não está ligada a nada; só ela pode descobrir o que é verdadeiro e o que é falso. Só ela pode descobrir se há, ou não, uma Realidade, Deus, uma coisa Atemporal — mas não a mente ligada a alguma coisa, a mente que acredita ou não acredita. O homem que vai à igreja, que mantém práticas espirituais e toda espécie de artifícios, de certo, não possui uma mente religiosa. A mente religiosa vê a falsidade de tudo isso, totalmente, completamente; assim sendo, porque é livre e não está firmada numa posição, numa base, , da qual parte para investigar, ela inicia sua investigação livremente. Essa mente, por conseguinte, é desapaixonada, sã, racional, capaz de raciocinar — e tal é, afinal de contas, a característica da mente científica. Mas a mente científica não é uma mente religiosa. A mente científica está interessada em examinar uma certa parte da existência, um segmento da vida; a mente científica, portanto, não pode compreender a totalidade em que a mente religiosa compreende. 

Para se ter essa mente religiosa (não adulterada), necessita-se de uma revolução, não econômica ou social, porém psicológica — uma revolução na psique, no próprio processo do nosso pensar. Ora, como fazer despontar essa mente? Vemos a necessidade dessa mente (não adulterada) — da mente nova, sem fronteiras; da mente nova, não ligada a nenhum grupo, raça, família, cultura ou civilização; da mente nova não resultante da moralidade social. A moralidade social não é moralidade nenhuma, pois só lhe interessa a moral social; cada um pode ser ambicioso, cruel, vão e invejoso, à vontade. E a moral social é inimiga da mente religiosa. 

Assim, como nascerá uma mente religiosa, a mente nova? Como você tratará de obtê-la? Esta não é uma pergunta retórica. Este problema se apresenta para todos nós: como ter uma mente fresca, jovem, nova — pois a mente velha não resolveu coisa alguma e multiplicou os seus problemas. Como você tratará disso, que empreenderá para suscitar essa mente? Você precisa de algum sistema, algum método? Veja, por favor, a importância desta pergunta que estou fazendo, veja o seu significado. Necessitamos de uma mente nova, que é de essencial importância; mas como alcançá-la? Por meio de algum método — que é sistema, que é prática, ação que se repete dia a dia? Um método pode produzir a mente nova?[...]

Sem dúvida, todo método implica em prática continuada, dirigida por um certo caminho, para a obtenção de determinado resultado — e isso, afinal, significa adquirir um hábito mecânico, e, por meio desse hábito mecânico, fazer surgir uma mente que não é mecânica. É isso, essencialmente, o que implica o método. Você diz "Disciplina", mas toda disciplina se baseia num método ajustado a um certo padrão; e o padrão lhe promete um resultado, predeterminado pela mente que já tem uma dada crença, que já adotou uma certa posição.  Assim, pode um método, no sentido mais amplo ou mais restrito da palavra, produzir aquela mente nova? Se não pode, então o método, como hábito, deve desaparecer completamente, porque é falso. Não importa se foi Sankara, Buda ou o santo mais moderno que lhe preconizou o método, ele é completamente falso, porque todo método só serve para condicionar a mente de acordo com o resultado desejado. Mas, você sabe o que é a mente nova — a mente fresca, jovem, "inocente"? Como pode saber? Não pode saber; precisa descobri-la. Por conseguinte, deve abolir todo o processo mecânico da mente.[...] A mente deve se livrar de todo o processo mecânico do pensamento. Não é verdadeira a ideia de que um método, sistema, disciplina, hábito, produzirá essa mente. Portanto, tudo isso tem de ser abolido completamente, por serem coisas mecânicas. A mente mecânica é uma mente tradicional, não está apta a enfrentar a vida, que não é mecânica; o método, consequentemente, tem de ser colocado de lado. Desse modo, o que deve ser feito para o alcance da mente nova? 

O conhecimento — que é experiência — lhe dará a mente nova? Experiência é a reação a um desafio, e o desafio, por certo, de de acordo com a sua memória, de acordo com seu condicionamento. O conhecimento, pois — que é experiência — lhe ajudará a alcançar a mente nova? Não deve a mente nova se achar num estado de "não experiência"? [...] Há desafio e "resposta" reação). Vivemos dessa maneira. A cada instante a vida nos desafia, e nós "respondemos". Respondemos segundo o nosso condicionamento hinduísta, muçulmano, etc. Se você rejeita o desafio externo — e muito poucos o fazem — cria seu próprio desafio interno, psicológico — as incertezas interiores e suas reações a elas. E tudo isso, tanto a reação externa como a interna, baseiam-se na experiência. E essa experiência sempre se acumula como conhecimento, como tempo.[...] Sendo o tempo experiência, na forma de conhecimento, ele produzirá uma mente nova? Claro que não, porque a própria expressão "mente nova" sugere algo novo, totalmente novo, que não pode ser produzido pela experiência. A experiência é sempre o passado — isto é, tempo. Percebe-se assim que nem o hábito, nem a experiência como conhecimento, produzirão a mente nova, e tampouco a alcançaremos por meio do tempo. 

Se você negar tudo isso — como não poderá deixar de fazer, se tiver penetrado em si mesmo e se examinado — verá então que a total negação de tudo o que você sabe, de toda experiência, toda tradição, todo movimento nascido do tempo, é o começo da mente nova. Para negar totalmente, se necessita de energia. Em geral recebemos energia da resistência. Recebemos energia da fuga; recebemos energia da inveja, da ambição, da avidez, da brutalidade, do desejo de amor. Mas essa energia cria a correspondente contradição, e esta dissipa a energia. A maioria de nós não tem energia para negar e permanecer nesse estado de negação, que constitui a mais elevada forma de pensar. Mas essa negação gera energia, porque nela não há contradição. 

Assim, a mente religiosa, ou mente nova, é a mente revolucionária. Porque, então, a mente já não é ambiciosa, invejosa; percebeu o significado da inveja, da ambição, da autoridade e, por conseguinte, delas se livrou — não no fim, porém no presente, imediatamente. E essa negação é própria da meditação. Meditação não é essa coisa simplória consistente em repetir palavras, sentado à frente de uma imagem, procurando ter visões e todas as correspondentes sensações; meditação é, sim, o percebimento constante que nos faz ver o falso e negá-lo totalmente. Essa negação provê energia — não a energia que nasce do conflito, não a energia recomendada pela chamada mente religiosa, que nos manda ser celibatários toda a vida, etc. etc; tudo isso são formas de resistência e, por conseguinte, contradição. Pode-se ver realmente a totalidade desse processo, compreendê-lo completamente, quando não nos colocamos num "ponto alto" para, daí, o examinarmos. Só a mente religiosa pode ir muito longe, só a mente religiosa pode descobrir o que transcende as medidas da mente. 

Jiddu Krishnamurti em, A Mutação Interior    

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"É porque se espalha o grão que a semente acaba
por encontrar um terreno fértil."-
Júlio Verne


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"Acredito que o maior presente que alguém me pode dar é ver-me, ouvir-me, compreender-me e tocar-me. O maior presente que eu posso dar é ver, ouvir, entender e tocar o outro. Quando isso acontece, sinto que fizemos contato" — Virginia Satir

"A mente inocente é aquela que não pode ser ferida. Uma mente sem marcas de ferimentos recebidos — eis a verdadeira inocência; temos cicatrizes no cérebro e, com elas, queremos descobrir um estado mental sem ferimento algum. A mente inocente não pode ferir-se (isto é, sofrer ofensa), porque nunca transporta um ferimento de dia para dia. Não há, pois, nem perdão, nem lembrança.[...] A mente em conflito não tem nenhuma possibilidade de compreender a Verdade" — Krishnamurti