sábado, 30 de abril de 2016

É possível sermos realmente livres?


Nós, entes humanos, não somos livres, levamos uma pesada carga de condicionamento, imposta pela cultura em que vivemos, pelo ambiente social, pela religião, etc. Assim, visto que estamos condicionados, somos agressivos. Os sociólogos, os antropólogos e os economistas explicam essa agressividade. Há duas teorias: ou herdamos essa agressividade do animal, ou a sociedade, que cada ente humano construiu, impele -nos, força-nos a ser agressivos. Mas, o fato é mais relevante do que a teoria: não importa se a agressividade vem do animal ou da sociedade: nós somos agressivos, somos brutais, incapazes de olhar e examinar imparcialmente as sugestões, idéias ou pensamentos de outrem. Porque está assim condicionada, a vida se torna fragmentária. Nossa vida - o viver de cada dia, nossos diários pensamentos e aspirações, o desejo de aperfeiçoamento pessoal (uma coisa horrível) - é fragmentária. Esse condicionamento faz de cada um de nós um ente humano egocêntrico, que luta no interesse de seu "eu", sua família, sua nação, sua crença. Surgem assim as diferenças ideológicas - vós sois cristão, outro é muçulmano ou hinduísta. Podeis tolerar-vos reciprocamente, mas, basicamente, interiormente, há uma profunda divisão, há desprezo, sentimento de superioridade, etc. Por conseguinte, esse condicionamento não só nos faz egocêntricos, mas também, nesse próprio egocentrismo, há um processo de isolamento, de separação, de divisão, que torna absolutamente impossível a cooperação.

Perguntamos: É possível sermos livres? Podemos nós, na situação em que nos encontramos, condicionados, moldados por tantas influências, pela propaganda, pelos livros que lemos, pelo cinema, o rádio, as revistas - tudo isso a martelar-nos e a moldar-nos a mente - podemos nós viver, neste mundo, completamente livres, não só conscientemente, mas nas raízes mesmas de nosso ser? É este - assim me parece o desafio, o problema único. Porque, se não somos livres, não há amor: há ciúme, ansiedade, medo, domínio, cultivo do prazer - sexual ou outro. Se não somos livres, não podemos ver claramente e não há sensibilidade à beleza. Isto não são simples argumentos em prol da "teoria" de que o homem deve ser livre; uma tal teoria se torna, por sua vez, uma ideologia, e esta, a seu turno, separa as pessoas. Assim, se, para você, é este o problema central, o desafio máximo da vida, não há então nenhuma questão de ser feliz ou infeliz (isso se torna uma coisa secundária), de poder ou não conviver em paz com outros, ou de ser suas crenças e opiniões mais importantes que as de outrem. Tudo isso são problemas secundários, que serão resolvidos se o problema central for plena e profundamente compreendido e solucionado. Se, observando os fatos reais que lhe cercam e os fatos reais existentes dentro de você mesmo, sente realmente que é este o desafio único da vida; se percebe que a dependência das idéias, opiniões e juízos de outrem, a veneração da opinião pública, dos heróis, dos exemplos, geram a fragmentação e a desordem; se você vê claramente todo o mapa da existência humana, com suas nacionalidades e guerras, a separação entre seus deuses, sacerdotes e ideologias, o conflito, a angústia, o sofrimento; se você mesmo vê tudo isso, não como coisa ensinada por outrem, nem como ideia ou aspiração - surge então um estado de completa liberdade interior, não há medo da morte, e você e o orador estão em comunhão, em comunicação um com o outro.

Mas se, para você, não é este o principal interesse, o principal desafio e você pergunta se é possível a um ente humano achar Deus, a Verdade, o Amor, etc. - então você não é livre e, nesse estado, como pode achar alguma coisa? Como pode explorar, viajar, com toda essa carga, todo esse medo que acumulou através de sucessivas gerações? É este o único problema: É possível aos entes humanos serem realmente livres?

[...]A questão é esta: se é possível a um ente humano, a um indivíduo que vive neste mundo, numa sociedade tão complexa, tendo de trabalhar, manter casa, filhos, etc., tendo relações íntimas - ser livre. É possível viverem um homem e uma mulher numa relação em que exista liberdade completa, não haja domínio, nem ciúme, nem obediência - por conseguinte, numa relação em que haja amor? É possível? Como se pode ver alguma coisa claramente - as árvores e as estrelas, o mundo e a sociedade que o homem criou e que é você mesmo - se não há liberdade? Se, abeirando-se desta questão, você a olha com uma ideia, uma ideologia, com medo, com esperança, com ansiedade, "sentimentos de culpa" e as respectivas agonias - é óbvio que não pode ver claramente.

Se você vê tão claramente como o orador a importância de um indivíduo ser completamente livre - livre do medo, do ciúme, da ansiedade; livre do medo da morte e do medo de não ser amado do medo da solidão e do medo de não conseguir livre de todos os temores - se é este, podemos então partir daí. A libertação total é o único problema da existência humana, pois o homem vem buscando a liberdade desde o começo dos tempos, embora dizendo "só há liberdade no céu, e não na Terra". Cada grupo, cada comunidade tem uma diferente ideologia acerca da liberdade. Rejeitando e lançando para o lado todas as ideologias, perguntamos se, vivendo agora neste mundo, temos possibilidade de ser livres. Se você e eu percebemos ser este o único desafio de nossa vida, podemos então começar a descobrir por nós mesmos de que maneira irmos ao seu encontro, olhá-lo, entrar em contato com ele. Podemos começar deste ponto?

Jiddu Krishnamurti em, A libertação dos condicionamentos

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"Acredito que o maior presente que alguém me pode dar é ver-me, ouvir-me, compreender-me e tocar-me. O maior presente que eu posso dar é ver, ouvir, entender e tocar o outro. Quando isso acontece, sinto que fizemos contato" — Virginia Satir

"A mente inocente é aquela que não pode ser ferida. Uma mente sem marcas de ferimentos recebidos — eis a verdadeira inocência; temos cicatrizes no cérebro e, com elas, queremos descobrir um estado mental sem ferimento algum. A mente inocente não pode ferir-se (isto é, sofrer ofensa), porque nunca transporta um ferimento de dia para dia. Não há, pois, nem perdão, nem lembrança.[...] A mente em conflito não tem nenhuma possibilidade de compreender a Verdade" — Krishnamurti