sábado, 30 de abril de 2016

Por que não arde em seu coração a chama do amor?


A sociedade, como atualmente está constituída, é uma coisa horripilante, com suas intermináveis guerras de agressão — não importa se agressão defensiva ou ofensiva. Necessitamos de uma coisa totalmente nova, de uma revolução, uma mutação na própria psique. O velho cérebro nenhuma possibilidade tem de resolver o problema humano das relações. O velho cérebro é asiático, europeu, americano ou africano, e, assim, interrogamos a nós mesmos se é possível operar-se uma mutação nas próprias células cerebrais. 

Investiguemos, também, agora que chegamos a compreender-nos melhor, se é possível a um ente humano que vive sua vida normal de cada dia, neste mundo brutal, violento, cruel — um mundo que se está tornando cada vez mais eficiente e, por conseguinte, cada vez mais cruel — se é possível a esse ente humano promover uma revolução não só em suas relações externas, mas também em toda a esfera do seu pensar, sentir, agir e reagir.

Todos os dias vemos ou lemos coisas aterradoras que estão acontecendo no mundo, como resultado da violência no homem existente. Você pode dizer: "Eu nada posso fazer a esse respeito", ou "Como posso influir no mundo?" Eu acho que você pode influir no mundo de uma maneira admirável se em si mesmo não é violento, se vive realmente, em cada dia, uma vida pacífica, uma vida sem competição, sem ambição, sem inveja, uma vida não causadora de inimizade. Pequenas chamas podem tornar-se em incêndio. Reduzimos o mundo ao seu atual estado de caos com nossa atividade egocêntrica, nossos preconceitos, nosso nacionalismo, e quando dizemos que nada podemos fazer a tal respeito, estamos aceitando como inevitável a desordem em nós mesmos existente. Partimos o mundo em fragmentos e, se nós mesmos estamos partidos, fragmentados, nossa relação com o mundo será também fragmentária. Mas se, quando agimos, agimos totalmente, então a nossa relação com o mundo passa por uma enorme revolução. 

Afinal de contas, todo movimento que vale o esforço, toda ação de profunda significação, tem de começar em cada um de nós. Eu tenho de mudar primeiro; tenho de ver qual é a natureza e a estrutura de minha relação com o mundo — e no próprio ato de ver está o fazer — por conseguinte, como ente humano que vive neste mundo, devo criar uma coisa diferente, e essa coisa, a meu ver, é a mente religiosa. 

A mente religiosa difere completamente da mente que crê na religião. Você não pode ser religioso e ao mesmo tempo hinduísta, muçulmano, cristão, budista. A mente religiosa nada busca, não pode fazer experiências com a verdade. A verdade não é uma certa coisa ditada por seu prazer ou sua dor, ou por seu condicionamento hinduísta — ou qualquer que seja a religião a que você pertence. A mente religiosa é um estado de espírito em que não há medo e, por conseguinte, não há crença de espécie alguma, porém, tão-só o que é, o que realmente é

Na mente religiosa há aquele estado de silêncio que não é produzido pelo pensamento, mas é oriundo do percebimento, ou seja da meditação com completa ausência do meditador. Nesse silêncio há um estado de energia isento de conflito. Energia é ação e movimento. Toda ação é movimento e toda ação é energia. Todo desejo é energia. Todo sentimento é energia, todo pensamento é energia. Todo viver é energia. Toda vida é energia. Se se deixa essa energia fluir sem nenhuma contradição, nenhum atrito, nenhum conflito, ela é então ilimitada, infinita. Quando não há atrito, não há limites à energia. O atrito é que dá limites à energia. Assim, percebido isso, por que é que o ente humano sempre introduz o atrito na energia? Por que cria atrito, nesse movimento a que chamamos vida? A energia pura, a energia ilimitada é para ele apenas uma ideia? Não tem realidade? 

Necessitamos de energia, não só para promovermos a revolução total em nós mesmos, mas também para podermos investigar, olhar, atuar. E, enquanto houver atrito, de qualquer natureza, em qualquer de nossas relações, seja entre marido e mulher, seja entre um homem e outro, entre uma e outra comunidade, ou uma e outra nação, ou uma ideologia e outra — se há qualquer atrito, interior ou exterior, em qualquer forma, por mais sutil que seja — há desperdício de energia. 

Enquanto houver um intervalo de tempo entre o observador e a coisa observada, esse intervalo criará atrito e, por conseguinte, desperdício de energia. Essa energia se acumula até o mais alto grau quando o observador é a coisa observada, e nisso não há nenhum intervalo de tempo. Haverá então energia sem motivo, a qual encontrará seu próprio canal de ação, porque, então, o EU não existe.

Necessitamos de uma enorme abundância de energia para compreender a confusão em que estamos vivendo, e o sentimento "tenho de compreender" produz a vitalidade necessária para a compreensão. Mas, o descobrir, o investigar, implica o tempo, e, como já vimos, o gradual descondicionamento da mente não é a maneira certa de proceder. 

O tempo também não é o caminho certo. Quer sejamos velhos, quer jovens, é agora que o integral processo da vida pode ser levado a uma dimensão diferente. A busca do oposto do que somos não é, tampouco, o caminho certo e também não o é a disciplina artificial imposta por um sistema, por um instrutor, um filósofo ou sacerdote; tudo isso é muito infantil. Ao percebermos isso, perguntamos a nós mesmos: "Será possível libertarmo-nos imediatamente desta secular e pesada carga de condicionamento, sem cairmos noutro condicionamento — sermos livres, com a mente completamente nova, sensível, viva, alertada, intensa, capaz?". Eis o nosso problema. Não há outro problema, porque, quando a mente se renova é capaz de enfrentar e resolver qualquer problema, É essa a única pergunta que temos de fazer a nós mesmos. 

Mas, nós não a fazemos. Preferimos ser ensinados. Um dos aspectos mais curiosos da estrutura de nossa psique é o querermos, todos nós, ser ensinados, porquanto somos o resultado de uma propaganda de dez mil anos. Queremos ver o nosso modo de pensar confirmado e corroborado por outrem, ao passo que fazer uma pergunta é fazê-la a nós mesmos. O que eu digo tem muito pouco valor. Você o esquecerá no mesmo instante em que fechar este livro, ou se lembrará de algumas frases, as quais ficará repetindo, ou comparará o que aqui leu com o que leu noutro livro; você não quer olhar de frente a sua própria vida. E só ela é que importa: a sua vida, você mesmo, sua mediocridade, sua superficialidade, sua brutalidade, sua violência, sua avidez, sua ambição, sua diária agonia e infinito sofrer; é isso que você tem de compreender, e ninguém, nem na terra, nem no céu, pode salvar-lhe, senão você mesmo. 

Vendo tudo o que se passa em sua vida diária, em suas atividades cotidianas, quando escreve, quando fala, quando sai de carro ou passeai a sós numa floresta, você pode, num só alento, num só olhar, conhecer a si mesmo, muito simplesmente, tal como é? Quando se conhecer como é, compreenderá então toda a estrutura da luta do homem — seus embustes, suas hipocrisias, sua busca. Para tanto, você tem de ser sumamente honesto perante você mesmo, em todo o seu ser. Quando você age de acordo com seus princípios, está sendo desonesto, porque, quando age conforme o que julga ser correto, você não é o que é. É uma coisa brutal — ter ideais. Se você tem ideais, crenças ou princípios de qualquer espécie, não pode de modo nenhum olhar-se diretamente. Portanto, você pode ser completamente negativo, manter-se inteiramente tranqüilo, sem pensar, sem temer, e ao mesmo tempo estar extraordinariamente, apaixonadamente, vivo? 

Aquele estado em que a mente já não é capaz de lutar constitui a verdadeira mente religiosa, e, nesse estado mental, você pode encontrar-se com essa coisa denominada verdade ou realidade ou bem-aventurança ou Deus ou beleza ou amor. Essa coisa não pode ser chamada. Por favor, compreenda esse simples fato. Ela não pode ser chamada, não pode ser buscada, porque sua mente é tão estúpida e limitada, suas emoções tão vulgares, sua maneira de vida tão confusa, que aquela imensidade, aquela coisa ilimitada não pode ser chamada a sua pequena casa, ao insignificante canto em que você vive, tão pisado e cuspido. Não pode chamá-la. Para a chamar, você deve conhecê-la, e você não pode conhecê-la. No momento em que alguém, não importa quem, diz: "Sei" — não sabe. No momento em que você diz que achou, não achou. Se diz que a experimentou, nunca a experimentou. Tudo isso são maneiras de explorar um homem — seu amigo ou inimigo. 

Perguntamos então, a nós mesmos, se é possível encontrar-nos com essa coisa sem a chamarmos, sem a esperarmos, sem a buscarmos ou explorarmos — se é possível ela "acontecer", tal como a brisa fresca que entra na sala quando deixamos a janela aberta. Você não pode convidar o vento a entrar, mas tem de deixar aberta a janela — o que não significa ficar num estado de espera; essa é uma outra maneira de nos enganarmos. Não significa que deva "abrir-se" para receber; essa é uma outra forma de pensamento. 

Você nunca perguntou a si mesmo por que aos entes humanos falta essa coisa? Eles geram filhos, satisfazem o sexo, têm ternuras, a capacidade de compartilhar as coisas num estado de companheirismo, de amizade, de camaradagem, mas essa coisa — por que razão não a tem? Nunca lhe ocorreu, num momento de folga — ao andar sozinho por uma rua imunda, ao viajar num ônibus, ao passar umas férias à beira-mar, ao passear numa floresta, entre os pássaros, as árvores, os regatos, os animais selvagens — nunca lhe ocorreu perguntar por que razão o homem, que vive há milhões e milhões de anos, ainda não possui essa coisa, essa flor maravilhosa e imarcescível; por que razão você, um ente humano, dotado de tanta capacidade, tanta inteligência, tanta sutileza; você, que tanto compete, que possui uma tão maravilhosa tecnologia, que é capaz de elevar-lhe aos espaços e de descer ao fundo do mar, de inventar fantásticos cérebros eletrônicos — por que razão você não possui essa única coisa verdadeiramente importante? Não sei se alguma vez você já considerou seriamente esta questão: Por que o seu coração está vazio? 

O que você responderia se fizesse a si mesmo essa pergunta; qual seria sua resposta imediata, inequívoca, sem sutilezas? Sua resposta deveria corresponder à intensidade com que fizesse a pergunta, e ao seu sentimento de urgência; mas você não é intenso, nem sente aquela urgência, e isso porque você não tem energia, a energia que é paixão — pois nenhuma verdade se pode descobrir sem paixão — paixão impelida por intenso fervor, paixão sem nenhum desejo secreto. A paixão é uma coisa um tanto assustadora, porque, se você tem paixão, não sabe aonde ela o levará. 

Assim, será o medo a razão por que você não possui a energia daquela paixão, para descobrir por si mesmo por que lhe falta aquela essência do amor, por que não arde em seu coração essa chama? Se você examinou com muita atenção sua mente e seu coração, saberá por que não a tem. Se você é apaixonado, no descobrir por que não a possui, ela se lhe mostrará. Só pela negação completa, a mais alta forma da paixão, torna-se existente aquela coisa que é o amor. Como a humildade, você não pode cultivar o amor. A humildade vem à existência com a total cessação da presunção — e, então, você jamais saberá o que é ser humilde. O homem que sabe o que significa ter humildade é um homem vaidoso. Do mesmo modo, quando você aplica sua mente e seu coração, seus nervos, seus olhos, todo o seu ser, a descobrir o caminho da vida, a ver o que realmente é, e a ultrapassá-lo, a rejeitar total e completamente a vida que hoje vivemos — nessa negação do maléfico, do brutal, torna-se existente a outra coisa. E você nunca o saberá. O homem que sabe que está em silêncio, o homem que sabe que ama, não sabe o que é o amor ou o que é o silêncio. 

Jiddu Krishnamurti em, Liberte-se do Passado

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"É porque se espalha o grão que a semente acaba
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"Acredito que o maior presente que alguém me pode dar é ver-me, ouvir-me, compreender-me e tocar-me. O maior presente que eu posso dar é ver, ouvir, entender e tocar o outro. Quando isso acontece, sinto que fizemos contato" — Virginia Satir

"A mente inocente é aquela que não pode ser ferida. Uma mente sem marcas de ferimentos recebidos — eis a verdadeira inocência; temos cicatrizes no cérebro e, com elas, queremos descobrir um estado mental sem ferimento algum. A mente inocente não pode ferir-se (isto é, sofrer ofensa), porque nunca transporta um ferimento de dia para dia. Não há, pois, nem perdão, nem lembrança.[...] A mente em conflito não tem nenhuma possibilidade de compreender a Verdade" — Krishnamurti