sábado, 2 de abril de 2016

Como sobrevivemos num lar abusivo?

Lembre-se de si mesmo como uma criança completamente dependente da proteção dos pais, presenças que são as presumíveis fontes de nutrição, conforto, orientação e amor. Você é impressionável, vulnerável e confiante. E como uma pequena esponja, absorvendo sequiosamente o que quer que o seu complexo ambiente lhe ofereça. Adora explorar, experimentar e descobrir.

Mas os seus responsáveis não estão dispostos ou são incapazes de oferecer o calor e o carinho de que você precisa. Ficaram demasiado envolvidos com seus próprios problemas, preocupados demais com os seus próprios fins. Sua busca de drogas, álcool, poder ou dinheiro pode absorvê-los. Juntos ou separadamente, podem expressar sua raiva ou as suas exageradas necessidades sexuais descarregando-as sobre você e outros membros da família. Talvez eles o sujeitem a violência, períodos de silêncio ou recolhimento, segredos ou controle excessivo. Podem impor expectativas rígidas sobre você ou lhe dar muito pouca atenção e orientação. Podem regularmente diminuir, ridicularizar ou desencorajar os seus sentimentos e opiniões. Em vez de receber o amor generoso, a atenção e o apoio que merece, você é diminuído(a), ignorado(a), violado(a) ou desnecessariamente limitado(a).

Se não existe consistência na sua vida ou se é regularmente dominado por outros, você pode facilmente sentir-se sem controle, como se não possuísse pontos de referência confiáveis. Como resultado, a sua habilidade de confiar gradualmente diminui, e você se sente solitário no meio da desarmonia da sua vida. Com o tempo, desenvolve medos específicos ou um sentimento geral de ansiedade. Pode sentir-se confuso sobre quem você é e onde se encaixa, onde você termina e o mundo começa. 

Além disso, pode experimentar cada vez mais um profundo sentimento de vergonha. Se alguém repetidamente o desconsidera, você começa a acreditar nas mensagens que está recebendo. Se sofreu abusos físicos ou sexuais, pode achar mais fácil aceitar que a culpa é sua do que dolorosamente afirmar a verdade: que as pessoas que deveriam ser confiáveis para você são capazes de tais atos violentos. A sua confiança se esvai gradualmente, e como resposta você regularmente se acusa, considerando-se o problema. 

Muitos profissionais lúcidos e inteligentes da psicologia e do tratamento de dependências escreveram e falaram com eloquência, detalhadamente, sobre os elementos abusivos nas nossas histórias familiares e sociais e sobre nossas reações a eles. Quando sugiro que o inconsciente humano contém muitas camadas além das memórias biográficas, sei que estou pisando em território controverso. É verdade que muitas pessoas experimentam outros níveis, mas espontaneamente ou dentro do contexto da auto-exploração; eu o vi acontecer muitas vezes. E essas experiências podem trazer importantes compreensões, mudanças e crescimento.

Pessoas que se envolvem na auto-exploração e na terapia muitas vezes descobrem que esses outros níveis de experiência muitas vezes servem como suportes ou guarda-chuvas para as suas questões biográficas, adicionando-lhes potência e profundidade. Podem encontrar temas e emoções familiares associados a lembranças do nascimento ou da vida pré-natal: camadas profundas de culpa, solidão, raiva ou confusão. Podem encontrar, no nível transpessoal, elementos arquetípicos ou mitológicos, até mesmo sequências que parecem vir de outros contextos culturais e históricos, sublinhando as suas próprias histórias de abuso e dando-lhes poder. Alguém que está trabalhando sobre as sequelas de uma violação física perpetrada por um padrasto, por exemplo, pode alcançar um nível dentro de si que contenha uma identificação realista com o sofrimento da humanidade.

Um modelo expandido da psique humana oferece a possibilidade de entendimento e assistência mais profundos para os necessitados. Muitos psicólogos transpessoais realizaram uma obra sólida, confiável e bem-documentada que oferece valiosas percepções sobre a nossa composição.

[...] Como sobrevivemos? Como tomamos conta de nós mesmos? O que fazemos para tornar nossas vidas aceitáveis e seguras? Como uma criança que vive dia após dia numa atmosfera incerta ou abusiva encontra o que é preciso para suportar a sua existência? Como alguém que carrega a marca de uma vida pré-natal ou nascimento complicados ou que se sente profundamente influenciado por um poderoso tema mitológico se vira num mundo que pode estar reforçando tais padrões?

Nós nos sustentamos tornando-nos extraordinariamente criativos. Como não podemos depender dos outros, aprendemos a depender de nós mesmos. Já me senti profundamente emocionada, até mesmo espantada, com o impressionante poder e engenho do espírito humano. Ele nos ajuda a suportar as situações mais inconcebíveis e as mais constantes transgressões menores. Como a criatividade nasce da espiritualidade ou, como acreditam alguns, é o mesmo que a espiritualidade, usamos a Personalidade mais profunda à medida que aprendemos a lidar com as nossas vidas.

A psiquiatria tradicional define mecanismo de defesa como um processo psicológico muitas vezes inconsciente que torna o ego capaz de chegar a soluções de compromisso com os problemas. Todos criamos mecanismos de defesa, tanto diante de dificuldades relativamente pequenas como das grandes. Segundo essa definição, as nossas defesas são apenas uma função do ego. Mais recentemente, no entanto, muitas abordagens psicológicas expandiram o seu entendimento para incluir mecanismos físicos e espirituais, além dos psicológicos.

Vamos dar uma olhada em alguns dos mecanismos de defesa mais familiares. Usamos tudo de nós para construí-los: o espírito, a mente, as emoções e o corpo. Automaticamente mobilizamos todas as nossas reservas para conseguir segurança e conforto para nós mesmos. Como muitas dessas estratégias de sobrevivência, no fundo, inspiradas pela Personalidade mais profunda, todas, pela sua própria definição mais profunda, são espiritualmente motivadas. Por questões de clareza, no entanto, irei dividi-las em três categorias gerais que necessariamente se misturarão. As primeiras são as estratégias que especificamente utilizam nossos recursos espirituais; as segundas, os recursos psicológicos (emocionais e mentais); e as últimas, os físicos.

Como veremos, há dois lados nesses inventivos planos de autopreservação. De início, eles nos trazem dons valiosos e necessários, mas, à medida que crescemos, eles muitas vezes se voltam contra nós e assim mesmo levamos para os nossos relacionamentos. Começamos rápida e habilmente a gerar estratégias de sobrevivência para nos defendermos das fontes externas de nossas dificuldades, removendo, amortecendo ou ignorando a nossa dor. A proporção que testamos esses novos esquemas, descobrimos que muitos deles funcionam bem, e assim os repetimos. Eventualmente, tornam-se tão familiares, que podemos confundir a nossa nova conduta com o que somos. Além disso, o nosso comportamento pode impedir relacionamentos com outros, levar-nos a desenvolver dependência ou, eventualmente, prejudicar-nos de outras maneiras.

Christina Groff em, Sede de Plenitude - Apego, Vício e Caminho Espiritual

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"Acredito que o maior presente que alguém me pode dar é ver-me, ouvir-me, compreender-me e tocar-me. O maior presente que eu posso dar é ver, ouvir, entender e tocar o outro. Quando isso acontece, sinto que fizemos contato" — Virginia Satir

"A mente inocente é aquela que não pode ser ferida. Uma mente sem marcas de ferimentos recebidos — eis a verdadeira inocência; temos cicatrizes no cérebro e, com elas, queremos descobrir um estado mental sem ferimento algum. A mente inocente não pode ferir-se (isto é, sofrer ofensa), porque nunca transporta um ferimento de dia para dia. Não há, pois, nem perdão, nem lembrança.[...] A mente em conflito não tem nenhuma possibilidade de compreender a Verdade" — Krishnamurti