É possível à mente humana, desenvolvida através de dois milhões de anos, escravizada a certos hábitos, a um certo ritmo, libertar-se de tudo isso e criar para si própria uma diferente mentalidade, uma nova maneira de ação? É disso que se necessita. Nas ciências, no mundo artístico, no mundo da política, e também no mundo religioso, podemos ir seguindo como estamos, melhorando aqui e ali — com uns arremedos de liberdade aqui, uns arremedos de prosperidade ali, um melhor governo, mais corrupção ou menos corrupção — declínio do pensamento, declínio do sentimento profundo, geral indiferença. E, no mundo científico, observa-se que os cientistas possuem umas poucas chaves que abrem as portas; eles estão sempre se movendo no sentido horizontal, com essas chaves, e a transpor aquelas portas; mas pouquíssimos perguntam: É possível uma "explosão" em sentido vertical, em vez de um movimento horizontal?
[...] Não sei se você já leu ou ouviu dizer que os cientistas, os antropólogos descobriram que o homem vive há dois milhões de anos e ainda não resolveu o seu problema. Após tão longo tempo, continua sofrendo, continua temendo, continua na agonia do desespero, em irremediável confusão, e por esse caminho poderá continuar indefinidamente.
Penso que é preciso ver isso, questionar isso, sentir esse problema: você, como ente humano que vive há dois milhões de anos, não resolveu o seu sofrimento; não está livre de seus desesperos, não está livre dessa coisa extraordinária chamada "a morte"; você nada tem de criador, em sua vida. Estamos agrilhoados à nacionalidade, à família, às inumeráveis formas de corrupção que nos cercam; e vivemos nessas condições, nela crescemos, sofremos, e morremos, na esperança de uma futura felicidade num outro mundo, ou de voltar a este, ou acalentando uma certa e vaga esperança, oriunda de nosso desespero; e vivemos citando determinado livro religioso, como se ele fosse uma realidade suprema. Asim são as nossas vidas. Cumpre-nos, pois, estar muito vigilantes, estar em comunhão com tudo isso; e, assim, talvez possamos "explodir", porque é disso que se necessita, de uma mente nova, uma forma de pensar, uma nova maneira de agir, uma nova vida de relação. Porque a vida é movimento e relações; e ela exige de nós extraordinária vigilância, que nunca estacionemos, nunca nos estabilizemos por um momento sequer, e aí fiquemos ancorados. A vida é um movimento infinito. Se não se compreende esse movimento, o indivíduo permanecerá no sofrimento.
questão principal, portanto, é esta: Como pode a mente, sua mente — e não uma mente abstrata — como pode sua mente, que vive num mundo de confusão, de desdita, de opressão, de pobreza, em que a autoridade, investida em tremendos poderes, está destruindo a mente; como pode essa mente, que é o resultado da influência de dois milhões de anos de ambiente e de condicionamento — como pode essa mente "explodir" e descobrir algo novo, não no sentido horizontal, porém no sentido vertical? Esse é que é o verdadeiro problema, e não se há Deus, se se deve acreditar nisto ou naquilo; isso vem muito depois. Para você descobrir a realidade, deve deixar de funcionar horizontalmente, quer dizer, deve se libertar de seu ambiente. A este respeito falaremos mais tarde. Asim, o problema principal que temos à frente é este: Podemos continuar a viver como estamos vivendo, por outros dois milhões de anos , e mais, ir à Lua, descer dez milhas abaixo da superfície do mar, ou permanecer debaixo do mar por um mês ou dois, dentro de cavernas — conforme está se experimentando — e continuar indefinidamente nas garras do sofrimento? É este "o caminho da vida", ou há uma nova maneira de viver? Temos de viver realmente, e não de acordo com alguém, de acordo com o orador, de acordo com uma fórmula, de acordo com uma ideia ou ideal, com um padrão; todas estas coisas já fizemos e elas nos trouxeram aonde nos achamos.
Assim, pois, você deve perguntar a si mesmo se tem a possibilidade de se desligar disso completamente, se desligar do passado, para começar de maneira nova, sem saber. Porque o saber, ainda que importante num certo nível — pois em tal nível precisamos dele, do saber técnico, de certas lembranças essenciais — o saber é um empecilho à "explosão" da nova era. Nosso problema, portanto, é este: Pode a sua mente, que tanta erudição, tantos conhecimentos adquiriu, colocar de lado o saber? Sabendo que a memória, o conhecimento, é importante, num certo nível, é ela capaz de colocar de lado esse saber, para observar, explorar o que é novo?
[...] Pode a mente, a sua mente, se libertar do passado, não no tempo, não amanhã, não daqui há dez anos? Isso só pode ser feito imediatamente, ou nunca! Você deve saber, que necessitamos de uma operação cirúrgica, necessitamos de uma enorme mutação — não de uma revolução, porém de mutação completa — de nossa mente, de nosso ser, anida de natureza animal, pois somos o resultado do animal. Grande parte do nosso cérebro é ainda animal: o animal é ávido, ciumento, medroso, ansioso, inseguro, competidor.[...] Somos muito semelhantes ao animal, em nosso comportamento, embira nos demos a aparência de estar em busca disto e daquilo, do super-humano, etc. Mas não estamos. Uma grande porção de nós é ainda animal; e, a menos que funcionemos de maneira completa, que nos livremos do animal em nós, continuaremos por mais dois milhões de anos a sofrer, em desespero, em agonia, inventando filosofias sem nenhum valor para nossa existência diária, e buscando Deus, porque, em nosso coração e em nossa mente, temos medo.
Esse, portanto, parece ser o problema principal. Pode a mente — nossa mente, sua mente, que está condicionada há dois milhões de anos — atenção: condicionada! — moldada e impiedosamente refreada por sua sociedade, por seus sacerdotes, por seus políticos, por seus economistas, por suas atividades sociais; refreada por sua família — pode essa mente atuar sobre si própria, se desligar completamente do passado e descobrir, por si mesma, que extraordinária mutação é essa que se faz necessária para resolver os nossos problemas?
[...] A primeira coisa, pois, que deve ser compreendida é que você mesmo tem de resolver o problema, e ninguém mais; você é que é responsável, e não outro, seu governo, nem os políticos (estes, afinal de contas, são uns pobres coitados) nem os sacerdotes, nem os gurus, nem os livros agrados, nem o instrutores, nem seus deuses e templos. Você, que é o resultado de dois milhões de anos, você, que tem sofrido, que está sofrendo, que se acha em desespero, que vive em perene busca, rogando, pedindo que lhe digam o que deve fazer — você deve despertar, se tornar um indivíduo, um indivíduo capaz de perceber claramente o problema e dele se libertar. Saiba que isso não exige coragem. Quando você vê muito claramente uma coisa, logo age; não pode deixar de agir. Só quando não vemos as coisas claramente, falamos de coragem e de ação.[...] O agir não exige coragem; só exige clareza de percepção, clareza de visão. E você não pode ter clareza de percepção se está meramente enredado em palavras, em frases, em crenças, em dogmas, nessa estultícia que se chama "ciência moderna", e com um tamanho acervo de superstições e dogmas religiosos. Assim, deve cada um perceber, por si mesmo, a importância de sua própria conduta, de sua própria clareza de percepção; sentir-se, cada um, enormemente responsável por si próprio.
[...] Então, a questão é esta: Você sabe o que significa não ter medo? Já tentou alguma vez, em espírito, saber o que significa existir sem nenhum medo? A mente se torna então extraordinariamente lúcida. E quando a mente está muito lúcida, atua no sistema nervoso; não há doenças psicossomáticas; então o corpo inteiro, a mente, funciona muito claramente; você não é então apenas mecanicamente eficiente; pode dar toda a sua atenção ao que está fazendo; com a mente, você está vigilante.
[...] Você aceita a autoridade porque tem medo. Se não houvesse medo, não iria ao templo, não olharia para um sacerdote, não haveria guru — nenhuma dessas futilidades existiria. Você seria um homem livre, para observar, investigar, inquirir, interrogar, exigir, nos mover. Assim, a primeira coisa que se deve compreender, me parece, é que o mundo se acha num contraditório estado de caos, de confusão, que ninguém, senão sua própria atividade, é capaz de resolver; ninguém: nenhum político, nenhum guru, nenhum instrutor, nenhum livro. Você é responsável por tudo, e em você é que deve se verificar a "explosão". Esta completa mutação deverá produzir uma transformação, e tal mutação não é uma fórmula. Sabe o que entendemos por "mutação"? Há duas coisas importantes na vida: mudança e mutação. Mudança implica continuidade do que foi, modificado ou ampliado ou alterado. Mudança implica um movimento do conhecido para o conhecido, modificado. É isso o que entendemos por mudança.[...] É só isso o que interessa à maioria de nós: mudança. Mas estamos falando de coisa inteiramente diferente, que nada tem que ver com mudança. Mudança é processo do tempo. Hoje sou isto, e, se atuar em mim mesmo, serei aquilo amanhã. No intervalo entre hoje e amanhã, pelo exercício da vontade, graças às circunstâncias, às influências, me tornarei aquilo. Quer dizer, durante o intervalo de tempo opera-se a mudança. Essa mudança já é conhecida e, por conseguinte, não é mutação. A mutação é coisa que não pode ser conhecida; porque, se já é conhecida, é apenas mudança. A mutação é uma dimensão totalmente diferente; e, por conseguinte você deve ter olhos diferentes, um diferente coração, uma mente diferente — uma mente toda diferente, e não uma mente "mudada".
Assim, pois, estamos falando de uma mente capaz de se servir do conhecimento, sem ser escrava do conhecimento; uma mente vazia e, por conseguinte, criadora. Porque os próprios cientistas, com alguns dos quais temos conversado, perguntam se a mente pode em algum tempo estar vazia. Porque percebem que só do vazio pode provir uma coisa nova, e não da mente que está "carregada", condicionada, etc. O novo não é condicionado pelo velho. O novo não é reconhecível pelo velho.[...] Se a mente não está vazia , é mecânica, só repete. Só desse vazio extraordinário, vigilante, sensível, pode provir o novo. O novo — se se pode usar esta palavra — é Deus; mas não é realmente Deus, porque tanto tem se abusado da palavra "Deus", que ela nenhuma significação tem; tornou-se uma fórmula, um conceito, um produto do desespero. Mas, é naquela mente vazia que pode ocorrer a criação; só nela pode existir o amor. Não sabemos o que significa o amor; sabemos o que significa sensação, sabemos o que significa sexo; porque o amor não pode estar onde existe o ciúme, o amor não é resultado do ciúme, não conhece o ciúme.
Krishnamurti em, Uma nova maneira de agir
Krishnamurti em, Uma nova maneira de agir
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