terça-feira, 19 de abril de 2016

Fomos e somos condicionados pelo medo


O medo é um dos mais formidáveis problemas da vida. A mente que está nas garras do medo vive na confusão, no conflito, e, portanto, tem de ser violenta, tortuosa e agressiva. Não ousa afastar-se de seus próprios padrões de pensamento e isso gera a hipocrisia. Enquanto não nos livrarmos do medo, ainda que galguemos o mais alto cume, ainda que inventemos toda espécie de deuses, ficaremos sempre na escuridão. 

Vivendo numa sociedade tão corrupta e estúpida, em que a educação nos ensina a competir — o que gera medo — nos vemos oprimidos por temores de todos os tipos; e o medo é uma coisa terrível, que torce e deforma, que assombra os nossos dias. 

Existe o medo físico, mas essa é uma reação herdada do animal. É o medo psicológico que nos interessa aqui, porque, compreendendo os temores psicológicos em nós profundamente enraizados, estaremos aptos a enfrentar o medo animal, ao passo que, se primeiramente nos interessarmos pelo medo animal, jamais compreenderemos os temores psicológicos. 

Todos nós temos medo de alguma coisa; não existe o medo como abstração, porém o medo só existe em relação com alguma coisa. Você sabe quais são os seus temores — o medo de perder seu emprego, de não ter comida ou dinheiro suficiente; medo do que os vizinhos e o público pensam de você, de você não ser um "sucesso", de perder sua posição na sociedade, de ser desprezado ou ridicularizado; medo da dor e da doença, de ser dominado por outrem, de não chegar a conhecer o amor, ou de não ser amado, de perder sua esposa ou seus filhos; medo da morte ou de viver num mundo que é igual à morte, um mundo de tédio infinito; medo de sua vida não corresponder à imagem que os outros fazem de você; medo de perder a sua fé — esses e muitos outros incontáveis temores; você conhece seus medos pessoais? E que costuma fazer em relação a eles? Não é verdade que foge deles ou que inventa ideias e imagens para encobri-los? Mas, fugir do medo é torná-lo maior. 

Uma das causas principais do medo é que não desejamos nos encarar tal como somos. Assim, temos de examinar tanto os nossos temores como essa rede de vias de fuga que criamos para nos libertarmos deles. Se a mente, que incluí o cérebro, procura dominar o medo, se procura reprimi-lo, discipliná-lo, controlá-lo, traduzi-lo em coisa diferente, daí resulta atrito e conflito, e esse conflito é um desperdício de energia. 

A primeira coisa, portanto, que devemos perguntar a nós mesmos é: "Que é" o medo, e como nasce?" Que entendemos pela palavra medo, em si? Estou perguntando a mim mesmo o que é o medo e não de que é que tenho medo. 

Vivo de uma certa maneira; penso conforme um determinado padrão; tenho algumas crenças e dogmas, e não quero que esses padrões de existência sejam perturbados, porque neles tenho minhas raízes. Não quero que sejam perturbados porque a perturbação produz um estado de desconhecimento de que não gosto. Se sou separado violentamente das coisas que conheço e em que creio, quero estar razoavelmente seguro do estado das coisas que irei encontrar. As células nervosas criaram, pois, um padrão, e essas mesmas células nervosas recusam-se a criar outro padrão, que pode ser incerto. O movimento do certo para o incerto é o que chamo medo. 

Neste momento em que estou aqui sentado, não estou com medo; não tenho medo do presente, nada está me acontecendo, ninguém está me ameaçando nem me tomando nada. Mas, além deste momento presente, uma camada mais profunda da mente está, consciente ou inconscientemente, pensando no que poderá acontecer no futuro, ou se preocupando com algum fato passado que possa me prejudicar. Portanto, tenho medo do passado e do futuro. Dividi o tempo em passado e futuro. O pensamento interfere, dizendo "Tem cuidado, para que isso não torne a acontecer", ou "Prepare-se para o futuro! O futuro pode ser perigoso. Agora você tem alguma coisa, mas pode perdê-la. Você pode morrer amanhã. Sua esposa pode lhe abandonar. Você pode perder seu emprego. Talvez nunca se tornará famoso. Pode se ver na solidão. Você precisar estar perfeitamente seguro do amanhã". 

Considere agora o seu temor particular. Olhe-o. Observe suas reações a ele. Pode olhá-lo sem nenhum movimento de fuga, de justificação, condenação ou repressão? Pode olhar aquele medo, sem a palavra que causa medo? Pode olhar a morte, por exemplo, sem a palavra que suscita o medo da morte? A própria palavra produz um estremecimento, não é exato? — assim como a palavra amor produz seu estremecimento, sua imagem peculiar. Pois bem; a imagem que você tem na mete a respeito da morte, a lembrança de tantas mortes a que assistiu, e o relacionar a sua pessoa com tais incidentes — é essa a imagem que está criando o medo? Ou, com efeito, você tem medo do findar e não da imagem que cria o fim? É a palavra morte que lhe causa medo ou é o próprio findar? Se é a palavra ou a memória que está lhe causando medo, então não se trata realmente do medo. 

Você esteve doente há dois anos, digamos, e a lembrança daquela dor, daquela doença, persiste, e a memória, agora em funcionamento, diz: "Tenha cuidado, para não adoecer de novo!" Por conseguinte, a memória, com suas associações, está criando o medo, porque, com efeito, neste momento você está gozando de perfeita saúde. O pensamento, que é sempre velho — pois o pensamento é reação da memória, e as lembranças são sempre velhas — o pensamento cria, no tempo, a ideia que lhe faz medo, a qual não é um fato real. O fato real é que você está bem de saúde. Mas a experiência, o que permaneceu na mente como memória, faz surgir o pensamento "Tenha cuidado para não adoecer novamente".  

Estamos vendo, pois, que o pensamento engendra uma espécie de medo. Mas, separado desse, existe realmente medo? É o medo sempre resultado do pensamento? Se é, existe alguma outra forma de medo? Tememos a morte — uma coisa que acontecerá amanhã ou depois de amanhã, no tempo. Há uma distância entre a realidade e o que será. Ora, o pensamento experimentou esse estado; observando a morte, ele diz: "Eu vou morrer". O pensamento cria o medo da morte; e, se não o cria, existe então realmente o medo? 

O medo é resultado do pensamento? Se é, uma vez que o pensamento é sempre velho, o medo é sempre velho. Como dissemos, não há pensamento novo. Se o reconhecemos, ele já é velho. Portanto, o que temos é e repetição do velho — o pensamento sobre o que foi, projetando-se no futuro. Por conseguinte, o pensamento é o responsável pelo medo. Isso é um fato que você pode observar por si mesmo. Quando você se vê diretamente em presença de alguma coisa, não há medo. Só quando surge o pensamento é que há medo. 

Por conseguinte, perguntamos agora: É possível à mente viver de maneira completa, total, no presente? Só assim a mente não tem medo. Mas, para compreender isso, você tem de compreender a estrutura do pensamento, da memória e do tempo. E, compreendendo-a, não intelectual nem verbalmente, porém de maneira real, com seu coração, sua mente, suas entranhas, você ficará livre do medo; a mente pode então se servir do pensamento, sem criar medo. 

O pensamento, como a memória, é naturalmente necessário ao viver. É o único instrumento de que dispomos para nos comunicarmos, para trabalharmos em nossos empregos etc. O pensamento é a reação da memória, memória acumulada por meio da experiência, do conhecimento, da tradição, do tempo. Desse acúmulo de memória é que provêm as nossas reações, e essas reações constituem o pensar. O pensamento, portanto, é essencial em certos níveis, porém, quando o pensamento se projeta, psicologicamente, como futuro e como passado, criando o medo bem como o prazer, a mente se embota e, por conseguinte, torna-se inevitável a inércia

Assim, pergunto a mim mesmo: "Mas porque penso no futuro e no passado em termos de prazer e de dor, quando sei que esse pensamento gera medo? Não é possível o pensamento deter-se, psicologicamente, pois de outro modo o medo nunca terá fim?"

Uma das funções do pensamento é estar continuamente ocupado com alguma coisa. Em geral, desejamos ter a mente continuamente ocupada, para nos impedir de nos ver como realmente somos. Temos medo de nos sentir vazios. Temos medo de encarar os nossos temores. 

Conscientemente, você pode perceber os seus temores, mas você está cônscio deles nos níveis mais profundos? E como irá descobrir os temores ocultos, secretos? Pode o medo dividir-se em consciente e inconsciente? Esta é uma pergunta muito importante. O especialista, o psicólogo, o analista, dividiram o medo em camadas profundas e camadas superficiais, mas, se você for seguir o que diz o psicólogo ou o que eu digo, terá compreensão de nossas teorias, de nossos dogmas, de nossos conhecimentos, mas não terá a compreensão de si mesmo. Você não pode se compreender de acordo com Freud, Jung ou de acordo comigo. As teorias de outras pessoas não têm importância alguma. É a si mesmo que você deve perguntar se o medo pode ser dividido em consciente e subconsciente. Ou só existe medo, que você traduz de diferentes maneiras? Só existe um desejo; só há desejo. Você deseja. os objetivos do desejo variam, mas o desejo é sempre o mesmo.  Assim, talvez, da mesma maneira, só existe o medo. Você tem medo de uma porção de coisas, mas só existe um medo. 

Ao perceber que o medo não pode ser dividido, você verá que acabou com o problema do subconsciente, pregando um logro aos psicólogo e aos analistas. Ao compreender que o medo é um movimento único que se expressa de diferentes maneiras, e ao ver o movimento e não o objetivo a que se dirige, estará então em presença de uma questão imensa: Como olhar o medo sem a fragmentação que a mente cultivou?

Só há o medo total, mas como pode a mente que pensa fragmentariamente observar esse quadro total? Pode observá-lo? Temos levado uma vida de fragmentação e só somos capazes de olhar o medo através do processo fragmentário do pensamento. Todo o processo do mecanismo do pensamento é dividir tudo em fragmentos: Eu lhe amo e eu lhe odeio; você é meu amigo, você é meu inimigo; minhas idiossincrasias e inclinações, meu emprego, minha posição, meu prestígio, minha mulher, meu filho, minha pátria e sua pátria, meu Deus e seu Deus — tudo isso é fragmentação do pensamento. E o pensamento olha o estado atual de medo, ou tenta olhá-lo, e o reduz a fragmentos. Vemos, por conseguinte, que a mente só pode olhar esse medo total quando não há movimentação do pensamento.

Você pode observar o medo sem nenhuma conclusão, sem nenhuma interferência do conhecimento que a seu respeito você acumulou? Se não pode, então o que está observando é o passado e não o medo; se pode, nesse caso está, pela primeira vez, observando o medo sem a interferência do passado. 

Só se pode olhar com a mente muito quieta, assim como só se pode ouvir o que alguém está dizendo, quando a mente não está a tagarelar, a travar consigo um diálogo a respeito de seus problemas e ansiedades. Você pode, da mesma maneira, olhar o seu medo, sem procurar dissolvê-lo, sem trazer á cena o seu oposto, a coragem; olhá-lo de fato, e não tentar fugir dele? Quando você diz: "Eu tenho de controlá-lo, tenho de livrar-me dele, tenho de compreendê-lo" — você está fugindo dele. 

Você pode observar uma nuvem, uma árvore ou o movimento de um rio, com a mente relativamente quieta porque essas coisas não são sumamente importantes para você; mas o observar a si mesmo é muito mais difícil, porque então as exigências são muito práticas, as reações são muito rápidas. Assim, quando você está diretamente em contato com o medo ou o desespero, com a solidão e o ciúme, ou qualquer outro estado repulsivo da mente, você pode olhar de maneira tão completa que sua mente fique suficientemente quieta para vê-lo? 

Pode a mente perceber o medo, e não as diferentes formas de medo; perceber o medo total, e não aquilo de que você tem medo? Se você olha meramente para os detalhes do medo ou procura acabar com os seus temores um a um, nunca alcançará o ponto central, que é aprender a viver com o medo. 

O viver com uma coisa viva, tal o medo, requer uma mente e um coração altamente sutis, que não chegam a qualquer conclusão, podendo, portanto, seguir cada movimento do medo. Então, se você observar o medo, e com ele viver — e isso não leva um dia inteiro, porque um segundo ou um minuto pode bastar, para se conhecer a natureza do medo — se você viver com ele completamente, perguntará, inevitavelmente: "Qual a entidade que está vivendo com o medo? Qual a entidade que está observando o medo, observando cada movimento de todas as formas de medo, e ao mesmo tempo consciente do fato central do medo? Será o observador uma entidade morta, um ente estático, que acumula uma grande quantidade de conhecimento e informações a respeito de si próprio, e essa coisa morta é que está observando e vivendo com o movimento do medo?"  — Qual é a sua resposta? Não responda para mim, porém a si mesmo. É você — o observador — uma entidade morta observando uma coisa viva, ou você é uma coisa viva observando outra coisa viva? Porque, no observador existem os dois estados. 

O observador é o censor que não deseja o medo; o observador é o conjunto de todas as suas experiências relativas ao medo. E, assim, o observador está separado da coisa a que chama medo; há espaço entre ambos; está perpetuamente tentando dominá-lo ou dele fugir, e daí provém essa batalha entre ele próprio e o medo — essa batalha que é uma enorme perda de energia. 

Observando-o, você aprenderá que o observador é meramente um feixe de ideias e lembranças sem validade, sem substância nenhuma, ao passo que aquele medo é uma realidade; assim, você está tentando compreender um fato com uma abstração, e isso, naturalmente, você não pode fazer. Mas, será o observador que diz "Tenho medo", diferente da coisa observada, o medo? O observador é o medo e, uma vez percebido isso, não há mais dissipação de energia no esforço de livrar-se do medo, e o intervalo de tempo-espaço, entre observador e coisa observada, desaparece. Quando você percebe que é uma parte do medo, que não está separado dele, que você é o medo, então nada pode fazer a seu respeito: o medo terminou totalmente. 

Krishnamurti em, Liberte-se do Passado

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"A mente inocente é aquela que não pode ser ferida. Uma mente sem marcas de ferimentos recebidos — eis a verdadeira inocência; temos cicatrizes no cérebro e, com elas, queremos descobrir um estado mental sem ferimento algum. A mente inocente não pode ferir-se (isto é, sofrer ofensa), porque nunca transporta um ferimento de dia para dia. Não há, pois, nem perdão, nem lembrança.[...] A mente em conflito não tem nenhuma possibilidade de compreender a Verdade" — Krishnamurti