terça-feira, 12 de abril de 2016

A Mitologia e a Infância


A função primária da mitologia e dos ritos sempre foi a de fornecer os símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constantes que tendem a levá-lo para trás. Com efeito, pode ser que a incidência tão grande de neuroses em nosso meio decorra do declínio, entre nós, desse auxílio espiritual efetivo. Mantemo-nos ligados às imagens não exorcizadas da nossa infância, razão pela qual não nos inclinamos a fazer as passagens necessárias da nossa vida adulta. Nos Estados Unidos, há até um pathos de ênfase invertida: o alvo não é envelhecer, mas permanecer jovem; não é amadurecer e afastar-se de Mamãe, mas apegar-se a ela. Assim sendo, enquanto os maridos se mantêm numa atitude de adoração diante dos seus templos da infância — conformando-se em ser os advogados, comerciantes ou gênios que seu pais queriam que fossem —, suas esposas, mesmo após catorze anos de casamento e dois belos filhos crescidos, ainda estão em busca do amor — que só pode chegar até elas a partir dos centauros, silenos, sátiros e outros íncubos concupiscentes da horda de Pã, seja da forma revelada no segundo dos sonhos citados ou por meio dos templos populares da deusa venérea cobertos de baunilha sob a maquiagem, dos últimos heróis da tela. O psicanalista deve aparecer, então, para confirmar a sabedoria avançada dos mais antigos ensinamentos dos curandeiros-dançarinos com suas máscaras e dos feiticeiros-doutores-circuncidadores; em consequência disso, descobrimos, como ocorreu no sonho da picada da cobra, que o simbolismo perene da iniciação é produzido espontaneamente pelo próprio paciente no momento de sua emancipação. Ao que parece, há nessas imagens iniciatórias algo que, de tão necessário para a psique, se não for fornecido a partir do exterior, através do mito e do ritual, terá de ser anunciado outra vez, por meio do sonho, a partir do interior — do contrário, nossas energias seriam forçadas a permanecer aprisionadas num quarto de brinquedos, banal e há muito fora de moda, no fundo do mar.

Sigmund Freud enfatiza em seus escritos as passagens e dificuldades da primeira metade do ciclo de vida humano aquelas vivenciadas na infância e na adolescência, quando o nosso sol se aproxima do zênite. C. G. Jung, por sua vez, enfatizou as crises da segunda metade quando, para evoluir, essa esfera brilhante deve submeter-se a descer e desaparecer, finalmente, no útero noturno do túmulo. Os símbolos normais dos nossos desejos e temores transformam- se, nesse entardecer da vida, em seus opostos; pois, nesse ponto, já não é a vida, mas a morte, que constitui o desafio. Portanto, não é difícil deixar o útero; a dificuldade reside em deixar o falo — a não ser, é verdade, que o amargor da vida já tenha tomado posse do coração, situação na qual a morte atrai como a promessa de bênção que era antes representada pelo encantamento amoroso. Percorremos um círculo completo, do túmulo do útero ao útero do túmulo: uma ambígua e enigmática incursão num mundo de matéria sólida prestes a se diluir para nós, tal como ocorre com a substância do sonho. E, rememorando aquilo que prometia ser nossa aventura — ímpar, imprevisível e perigosa —, tudo o que encontramos, no fim, é a série de metamorfoses padronizadas pelas quais homens e mulheres, em todas as partes do mundo, em todos os séculos de que temos notícia e sob todas as aparências assumidas pelas civilizações, têm passado.

Joseph Campbell em, O Herói de Mil Faces

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"É porque se espalha o grão que a semente acaba
por encontrar um terreno fértil."-
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"A aventura é, sempre e em todos os lugares, uma passagem pelo véu que separa o conhecido do desconhecido; as forças que vigiam no limiar são perigosas e lidar com elas envolve riscos; e, no entanto, todos os que tenham competência e coragem verão o perigo desaparecer." — Joseph Campbell em, O Herói de Mil Faces

"Acredito que o maior presente que alguém me pode dar é ver-me, ouvir-me, compreender-me e tocar-me. O maior presente que eu posso dar é ver, ouvir, entender e tocar o outro. Quando isso acontece, sinto que fizemos contato" — Virginia Satir

"A mente inocente é aquela que não pode ser ferida. Uma mente sem marcas de ferimentos recebidos — eis a verdadeira inocência; temos cicatrizes no cérebro e, com elas, queremos descobrir um estado mental sem ferimento algum. A mente inocente não pode ferir-se (isto é, sofrer ofensa), porque nunca transporta um ferimento de dia para dia. Não há, pois, nem perdão, nem lembrança.[...] A mente em conflito não tem nenhuma possibilidade de compreender a Verdade" — Krishnamurti