quarta-feira, 13 de abril de 2016

A educação disfuncional mata a qualidade da delicadeza


Num vale afastado das cidades e do barulho, onde se erguem as colinas mais velhas do mundo, um pai veio a falar dos filhos. Ele, provavelmente, nunca olhou para aqueles morros; quase se diriam esculpidos à mão, imensos matacões a oscilar uns sobre os outros. Naquela manhã, o céu estava muito azul e diversos macacos subiam e desciam pela árvore, fora da varanda. Estávamos sentados no chão, sobre um tapete vermelho, e ele disse:

— Tenho vários filhos e minhas dificuldades começaram. Não sei o que fazer com eles. Terei de casar as moças e será muito difícil educar os rapazes e — ajuntou, como uma reflexão tardia — as moças. Se eu não os educar, viverão na pobreza, sem um futuro. Minha esposa e eu estamos muito preocupados. Como podeis ver, senhor, fui bem educado; tenho um diploma universitário e um bom emprego. Alguns dos meus filhos são muito inteligentes e brilhantes. Numa sociedade primitiva, seriam muito bem-sucedidos, mas hoje, quem quiser levar uma vida decente deverá possuir uma educação completa em algum campo especial. Creio que os amo e desejo que vivam uma existência feliz e industriosa. Não sei o que significa a palavra amor, mas lhes quero bem. Quero que sejam cuidados, bem-educados, mas sei que, assim que forem para a escola, as outras crianças e os professores os destruirão. O professor não está interessado em ensinar-lhes coisa alguma. Tem suas preocupações, suas ambições, suas brigas de família, suas aflições. Repetirá qualquer coisa que aprendeu num livro e as crianças se tornarão tão embotadas quanto ele. Há uma batalha entre mestre e aluno, a resistência da parte dos pequenos, o castigo, a recompensa e o medo dos exames. Tudo isso estropiará inevitavelmente a mente das crianças e, não obstante, elas terão de sofrer essa dura experiência para conseguir um diploma e um emprego. Em tais condições, que devo fazer? Passei muitas noites acordado pensando em tudo isso. Ano após ano, vejo como se destroem as crianças. Não notastes, senhor, que alguma coisa lhes acontece depois que atingem a puberdade? O rosto modifica-se; parecem ter perdido alguma coisa. Tenho pensado muitas vezes na razão por que essa asperidade, esse estreitamento da mente há de ocorrer no adolescente. Não faz parte da educação manter viva a qualidade da delicadeza?... Não sei bem como expressá-lo. Todos parecem tornar-se, de repente, violentos e agressivos, com um estúpido sentimento de independência. Na realidade, não têm nada de independentes. 

“Dir-se-á que os professores ignoram de todo esse pormenor. Vejo meu menino mais velho voltando da escola, já mudado, brutalizado, olhos endurecidos. Torno a perguntar: que vou fazer? Creio que os amo pois, do contrário, não estaria falando desse jeito sobre eles. Mas vejo que não posso fazer nada, a influência do meio é demasiado forte, a competição está crescendo, a crueldade e a eficiência passaram a ser os padrões. Assim sendo, todos se acabarão tornando como os outros; embotados, sem o brilho que tinham nos olhos e sem o sorriso feliz, que nunca mais voltará a aparecer do mesmo jeito. Desse modo, como um pai no meio de um milhão de outros pais, vim perguntar o que devo fazer. Vejo o efeito que causam a sociedade e a cultura, mas preciso mandá-los para a escola. Não posso educá-los em casa; não disponho de tempo para isso, minha mulher tampouco e, além do mais, eles necessitam da companhia de outras crianças. Falo-lhes em casa, mas minha voz soa como uma voz no deserto. Sabeis, senhor, o quanto somos terrivelmente imitativos, e as crianças são assim também. Querem pertencer a alguma coisa, recusam-se a ficar de fora e os líderes políticos e religiosos se utilizam disso e o exploram. E daqui a um mês, estarão desfilando em paradas, saudando a bandeira, fazendo demonstrações contra isto ou contra aquilo, atirando pedras e gritando. Estão perdidas, acabadas. Quando vejo meus filhos metidos nisso fico tão deprimido que, não raro, penso em suicidar-me. Posso fazer alguma coisa, por menor que seja? Eles não querem o meu amor. Querem um circo, como eu queria quando era menino, e o mesmo padrão se repete.” 

Continuamos sentados, muito quietos. O mainá estava cantando e as colinas antigas se enchiam da luz do sol. 

Não podemos voltar ao sistema antigo do professor com uns poucos alunos que moravam com ele, eram instruídos por ele e observavam o modo com que ele vivia. Isto se foi. Temos agora a tecnologia mecânica, que dá à mente a agudeza do metal. O mundo está-se tornando industrializado e trazendo com a industrialização os seus problemas. A educação descura do que sobra da existência do homem. É como ter um braço direito altamente desenvolvido, forte, vital, ao passo que o resto do corpo, fraco e frágil, se estiola. Como pai podeis ser uma exceção, mas a maioria quer o processo industrial, mecânico, desenvolvido à custa do ser humano total. A maioria parece vencer. 

Não poderia a minoria inteligente dos pais reunir-se e iniciar uma escola em que o homem é considerado e cuidado em seu todo, em que o educador não é apenas o informante, a máquina que transmite conhecimentos particulares, mas se preocupa com o bem-estar do conjunto? Isso quer dizer que o educador precisa de educação. Quer dizer criar um lugar onde o educador seja educado, com a ajuda de uns poucos pais profundamente interessados. Ou o vosso é apenas um grito transitório, desesperado? Não parecemos capazes de aplicar-nos a ver a verdade de alguma coisa e pô-la em prática. Creio, senhor, que nisso reside a dificuldade. É provável que vos interesseis muitíssimo por vossos filhos e por como deveriam estar. Mas a consciência do que acontece no mundo não parece afetar-vos radicalmente; vagueais com a sociedade. Entregai-vos apenas às queixas, que não conduzem a nada. Sois responsável não só por vossos filhos mas também por todas as crianças e tendes de juntar vossas forças às de outros para criar as novas escolas. Isso compete a vós e não à sociedade nem aos governos, pois fazeis parte dessa sociedade. Se amásseis deveras vossos filhos aplicar-vos-íeis de modo real e definitivo a produzir, ao mesmo tempo, uma espécie diversa de educação e uma espécie totalmente diversa de sociedade e cultura.

Jiddu Krishnamurti - Conversações com os pais e com o pessoal de Brockwood Park
Extraído do livro: O Começo do Aprendizado

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"A mente inocente é aquela que não pode ser ferida. Uma mente sem marcas de ferimentos recebidos — eis a verdadeira inocência; temos cicatrizes no cérebro e, com elas, queremos descobrir um estado mental sem ferimento algum. A mente inocente não pode ferir-se (isto é, sofrer ofensa), porque nunca transporta um ferimento de dia para dia. Não há, pois, nem perdão, nem lembrança.[...] A mente em conflito não tem nenhuma possibilidade de compreender a Verdade" — Krishnamurti