Dissemos que a liberdade, seja exterior, seja interior, não pode ser criada por meio de nenhum sistema -político ou econômico, comunista ou capitalista - nem tampouco por nenhuma organização religiosa, ou pelo seguirmos um certo grupo insignificante, separado dos demais. Examinamos suficientemente esta matéria na última reunião. Dissemos, também, que a liberdade não pode ser produto de nenhuma filosofia, de nenhuma teoria intelectual. Nesta manhã, vamos examinar a possibilidade de cada um de nós tornar-se realmente livre de todo e qualquer sistema ou método. E esta é uma das coisas mais complexas e mais difíceis de compreender. Falando em sistemas, queremos referir-nos não apenas ao fato exterior de seguir uma crença, um guru, um instrutor, uma determinada religião organizada, etc., mas também ao fato interior de seguir um certo hábito de pensamento, de viver em conformidade com uma certa crença, dogma ou princípio. Tudo isso constitui uma espécie de sistema. Somos, pois, forçados a perguntar por que razão teima o homem em seguir um sistema. Em primeiro lugar, por que razão interiormente - você e eu desejamos um sistema; e, em segundo lugar - externamente - que necessidade há de algum sistema? Por que necessitamos de qualquer sistema que seja? Todo sistema representa uma tradição, uma disciplina, um hábito, um certo conjunto de canais que a mente deve percorrer. Por que isso? Se abandonamos um dado conjunto de canais, logo adotamos outro.
Dissemos ser impossível haver paz, amor ou beleza, quando não há liberdade total; e que, evidentemente, não há possibilidade nenhuma de sermos livres, total e completamente, se, interiormente, psicologicamente, estamos seguindo um método, um sistema, ou um determinado hábito que vimos cultivando há muitos anos ou há muitas gerações e que se tornou uma tradição. Por que fazemos isso? É porque a mente está continuamente buscando segurança, certeza? Pode ser livre, psicologicamente, uma pessoa que só busca segurança para si própria? E, se não é livre, como poderá ela ver o verdadeiro através de um sistema ou tradição que promete, para o fim, a beleza, um inimaginável estado mental?
Pense junto comigo sobre esta matéria, ou, melhor, examinemos juntos. Se me permite sugerir, não se limite a ouvir palavras e mais palavras. Dizer "Intelectualmente, compreendo" é fazer uma declaração absolutamente falsa. Ao dizermos que compreendemos intelectualmente, isso significa que ouvimos uma série de palavras cujos significados compreendemos. Mas, "compreender" significa também ação imediata , e não: primeiro, compreender e, depois, talvez daqui a muitos dias, a ação. Veja a importância deste problema; veja que a liberdade não é possível quando se está cultivando a aceitação ou a obediência a uma dada ideologia ou tradição. Se você vê esse fato, realmente e não verbalmente, há então ação imediata, você abandona instantaneamente tal ideologia ou tradição. Mas, se diz "verbalmente compreendo o que você está dizendo" - isso é apenas uma fuga ao fato.
Por que razão desejamos segurança, psicologicamente? Necessitamos, é óbvio, da segurança física, necessitamos de alimentos, roupas e morada. Mas, por que razão a mente busca a certeza, porque necessita de uma estrutura que se converterá num sistema que nos garantirá essa certeza? E porque insiste a mente em buscar sua própria segurança, sua própria proteção, sua própria certeza? Pode a pessoa que, psicologicamente, está certa a respeito de alguma coisa, ser livre? - O que não significa que ela deva achar-se sempre num estado de incerteza. Isso faz surgir um problema de dualidade. O conflito, em qualquer forma, é um desperdício de energia; havendo dualidade, há conflito, e este, em essência, é um verdadeiro desperdício de energia. A pessoa que busca a certeza cria inevitavelmente o respectivo oposto. Buscar constantemente um estado em que não haja tribulações, perturbações, conflito, é correr justamente para o oposto desse estado - a tribulação, a perturbação, o conflito. Há incerteza e necessidade de certeza; entre essas duas coisas há conflito. E esse conflito em que nos vemos envolvidos, quase todos nós, é um desperdício de energia. Assim, porque busca a mente a certeza?
[...]Só há, para o homem, um problema, crise ou desafio central: tornar-se completamente livre. Enquanto ele estiver apegado a uma estrutura, método ou sistema, não terá liberdade. Pode essa estrutura ser abandonada de todo, imediatamente? O condicionamento da mente, que vem sendo cultivado há muitos anos ou séculos, esse próprio condicionamento é o sistema, a tradição, o hábito, etc. Enquanto a ele estiver sujeita, a mente jamais será livre. Essa liberdade não se encontra no fim, não é questão de, com o tempo, nos tornarmos livres. Não existe tal coisa de "com o tempo nos libertarmos" - quer dizer, tornar-nos livres por meio de uma disciplina, de uma fórmula. A fórmula ou o sistema só serve para, de diferentes maneiras, tornar mais forte ainda o condicionamento; não dá liberdade. A questão, por conseguinte, é esta: condicionada como está, pode a mente libertar-se de todo o seu condicionamento, incontinente, porque, de outro modo, o condicionamento continuará existente sob diferentes formas? Podemos prosseguir daí?
Uma pessoa nasceu cristã, católica, ou pertence a um dos muitos ramos do protestantismo. Desde criança foi condicionada para crer num Salvador, nos sacerdotes, nos ritos, num Deus, etc. etc. Ou ela é comunista, foi criada no comunismo, condicionada pelo que disse Lenine ou Marx. Surpreende-me a facilidade com que nos deixamos enredar por palavras; os comunistas substituíram a palavra "Cristo" e a respectiva filosofia pela palavra "Lenine" e a respectiva filosofia. Tão facilmente nos deixamos colher numa rede de palavras! Estamos condicionados, e o desafio, a crise existente no todo da consciência, é que o homem deve ser livre; do contrário, ele irá destruir a si próprio.
Pode a mente livrar-se de todo esse condicionamento e tornar-se - realmente, e não verbal, teórica ou ideologicamente livre? Eis o único desafio, o único problema de todos os tempos. Se você também percebe a importância desta questão - se a mente é capaz de descondicionar-se - podemos então examiná-la juntos. Nela estão implicadas várias coisas. Em primeiro lugar, qual a entidade que irá descondicionar a mente condicionada? Compreende? Desejo descondicionar-me: nasci hinduísta, fui criado numa certa parte do mundo com todas as respectivas influências, disciplinamentos, livros, revistas, o que certas pessoas disseram ou não disseram. Essa pressão constante moldou minha mente. E vejo que ela deve ser totalmente livre.
Como poderá tornar-se livre? Existe uma entidade que a tornará livre? Diz-se que há uma entidade - chamam-na "Atman", na Índia, "alma" ou "a graça de Deus", no Ocidente - a qual, se lhe damos oportunidade, produzirá aquela liberdade. Inculcam-me que, se eu viver justamente, se fizer certas coisas, seguir certas fórmulas, certos sistemas, certas crenças, me tornarei livre. Assim, em primeiro lugar supõe-se que existe uma entidade ou agente externo que pode ajudar-me a me libertar, que libertará a minha mente. Mas "fazer certas coisas" significa um sistema que irá condicionar-lhe - como está sempre acontecendo. Os teólogos e os teóricos, bem como os vários indivíduos religiosos, têm dito: "Façam estas coisas, exercitem-se, meditem, controlem, forcem reprimam, sigam, obedeçam, e virá então aquele agente exterior e fará um milagre: torná-los-á livres." Veja como isso é falso; entretanto, todas as religiões o creem, cada uma à sua maneira. Assim, se você ver esta verdade, que não há nenhum agente externo - Deus, 'ou como quiserdes chamá-lo – que libertará a mente condicionada, então, toda a estrutura religiosa, de sacerdotes com seus rituais e suas murmurações de palavras e mais palavras sem nenhuma significação, não terá mais sentido algum. Em segundo lugar, se de fato você rejeitar todas essas idéias, como poderá ser dissolvido o seu condicionamento?
Qual a entidade que o dissolverá? Se você rejeita o agente exterior, "sagrado", "divino", deve haver então alguma entidade que poderá dissolvê-lo. Quem é ela? - O observador? O "eu", o "ego", que é o observador? Atenhamo-nos a esta última palavra - "observador" - basta-nos ela. É o observador que irá dissolver o condicionamento? Diz o observador: "Preciso ser livre e, portanto, tenho de livrar-me de todo o meu condicionamento." Você rejeitou o agente exterior, divino, mas criou outro agente: o observador. Mas, o observador difere da coisa que ele observa? Continue acompanhando-me, por favor. Está compreendendo? Para nos libertarmos, dependíamos de um agente externo - Deus, um salvador, um Mestre, um guru, etc. Se você rejeita tais agentes, deve perceber ser necessário rejeitar também o observador, que é uma outra espécie de "agente". O observador é produto da experiência, do conhecimento, do desejo de libertar-se, a si próprio, de seu condicionamento; diz: "Eu preciso ser livre." Esse "eu" é o observador. O "eu" diz "Preciso ser livre". Mas, é o "eu" diferente da coisa observada? Ele diz: "Estou condicionado, sou nacionalista, sou católico, sou isto sou aquilo. É o "eu", de fato, diferente da coisa que ele diz estar separada de si, a que chama "meu condicionamento"? Dessa forma, está o "observador" - o "eu" que diz "sou diferente da coisa de que desejo libertar-me" - está esse "eu" realmente separado da coisa que ele observa? Há duas entidades distintas, o observador e a coisa observada, ou só existe uma entidade única - a coisa observada é o observador, e o observador é a coisa observada? (Isto se está tornando complicado demais?)
Ao percebermos a verdade de que o observador é a coisa observada, não há então dualidade e, por conseguinte, não há conflito (que, como dissemos, é desperdício de energia). Só há então o fato: a mente condicionada. O fato não é "eu estou condicionado e vou libertar-me do condicionamento". Assim, quando a mente percebe essa verdade, já não há dualidade, só há uma coisa: um estado de condicionamento, um estado condicionado - e nada mais! Podemos prosseguir deste ponto?
Pois bem; você está percebendo, não como ideia, está percebendo realmente que só há o condicionamento, e não "eu" e o condicionamento, como duas coisas diferentes, sendo que uma delas, o "eu", está exercendo a vontade para libertar-se do "condicionamento", havendo, por isso, conflito? Ao vermos que o observador é a coisa observada, não há conflito nenhum, o conflito foi totalmente eliminado. Assim, quando a mente vê que só há um estado condicionado, que aconteceu? Eliminou-se a entidade que ia exercer a força, a disciplina ou a vontade, a fim de libertar-se de seu condicionamento, e isso significa, essencialmente, que a mente eliminou por inteiro o conflito.
Ora, você o fez? Do contrário, não poderemos ir mais longe. Em palavras mais simples: Quando você vê uma árvore, existe o observador, a entidade que vê, e a coisa vista. Entre o observador e a coisa observada há espaço; entre a entidade que vê a árvore e a árvore há espaço. O observador que vê a árvore tem várias imagens ou idéias a respeito de árvores; através dessas inumeráveis imagens ele vê a árvore. Pode ele eliminar essas imagens - botânicas, estéticas, etc. - de modo que possa olhar a árvore sem nenhuma imagem, nenhuma ideia? Já tentou fazê-lo? Se nunca o tentou, se nunca o fez, não terá possibilidade de examinar este outro problema que estamos investigando: o problema da mente que sempre olhou as coisas como "observador", como entidade diferente da coisa observada e, por conseguinte, com um espaço, uma distância, entre si, como "observador" e a "coisa observada" - tal como o espaço que há entre a árvore e você. Se você é capaz disso, de olhar uma árvore sem nenhuma imagem, sem nenhum conhecimento, então o observador é a coisa observada. Isso não significa que ele se torna a árvore (uma ideia absurda), mas, sim, que desapareceu a distância entre o "observador" e a "coisa observada". Isso não é uma espécie de estado místico, abstrato, inefável; não significa cair em êxtase.
Quando a mente rejeita o agente exterior, divino, místico, etc. (uma invenção da mente que não soube resolver o problema de seu próprio condicionamento), quando a mente rejeita esse agente externo, inventa outro agente, o "eu", o "ego", o "observador ", que diz "vou libertar-me de meu condicionamento". Mas o fato é que só há uma mente num estado condicionado, e não uma dualidade, isto é, uma mente que diz "estou condicionada, preciso ser livre, preciso exercer a vontade sobre meu estado condicionado". Só há uma mente condicionada. Preste toda a atenção a isto; se realmente escutar com atenção, com seu coração e sua mente, verá o que sucederá. A mente está condicionada - só isso! - não há mais nada. Todas as invenções psicológicas - relação permanente, divindade, deuses, etc. etc., nascem dessa mente condicionada. Só ela existe e nada mais. Isso é um fato para você? Eis a questão; trata-se de uma coisa realmente extraordinária, se você puder chegar até lá. Porque, na observação só dessa coisa e de nada mais, começa a existir o estado de liberdade - que significa estar livre de todo conflito.
Jiddu Krishnamurti em, A libertação dos condicionamentos
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