A mente que vive com medo é uma mente morta, uma mente embotada; é uma mente incapaz de olhar, de ver, de ouvir claramente. É muito importante compreendermos nossas relações com os outros, com a sociedade, com tudo, para ficarmos totalmente livres do temor — não parcialmente, não fragmentariamente, não em certas ocasiões, porém completamente. Eu digo que isso é possível... O medo não é uma abstração, uma coisa de que podemos fugir; é uma realidade. Ainda que você consiga fugir, por um dia, por um ano, por algum tempo, ele tornará a lhe pegar e a lhe acompanhar por toda parte. Você pode desviar dele seus olhos, mas ele estará lá!
O medo só existe em relação a alguma coisa. Tenho medo da opinião pública, tenho medo da minha mulher, de meu patrão, tenho medo de perder o meu emprego, tenho medo da morte, medo da dor; se estou doente, gostaria de recuperar a saúde, e quando a recupero, tenho medo de uma recaída, de tornar a adoecer; tenho medo porque me vejo só; tenho medo porque ninguém me ama, ninguém se mostra afetuoso para comigo; tenho medo porque tenho de viver sem ser alguém. Se você está vigilante, por pouco que seja — "vigilante", não de maneira restrita, porém extensamente — perceberá seus temores manifestos: o receio de perder o emprego, e, por conseguinte, a necessidade de suportar entediante rotina, agradar o superior, aturar seus insultos, as desumanidades; o medo de não se preencher; o medo de não se tornar alguém, de se extraviar. Temos inumeráveis temores e, conscientemente, a possibilidade de conhecê-los. Se conscientemente, deliberadamente, você destinar meia hora para descobrir os seus temores, pelo menos os mais óbvios, lhe será muito fácil deles se livrar. Mas muito mais difícil é descobrir os temores inconscientes, profundos, que são de maior importância e que, durante o sono, se revelam em sonhos, etc.
[...] o medo pode assumir diferentes formas: temo a opinião pública, temo adoecer, temo perder minha esposa, temos "não ser ninguém", temos a solidão — sabe o que significa essa palavra? Alguma vez você já esteve só, sentiu o que significa "estar só"? Provavelmente nunca, porque você está rodeado de sua família, está sempre ocupado em seu emprego, lendo um livro, escutando o rádio e na incessante tagarelice dos jornais. Assim, provavelmente, você nunca conheceu o estranho sentimento de completo isolamento. Ocasionalmente, pode ter tido sugestões dele, mas, é bem provável que nunca tenha estado em contato direto com ele, como com a dor, com a fome, com o sexo. Entretanto, se você não compreender essa solidão que é a causa do medo, nunca compreenderá o medo e dele se libertará.
O medo pode se expressar de muitas maneiras — e o faz — mas só existe um medo. Medo é medo, não importa a forma em que se mostra, nem os meios através dos quais nos tornamos conscientes de sua existência. Posso temer a opinião pública, a morte, a perda do emprego, mil-e-uma coisas; porém o medo permanece o mesmo. Ora, se o medo é consciente ou inconsciente, é isso que é preciso descobrir, investigar. Infelizmente, dividimos a vida — em "consciente" e "inconsciente".[...]
Dividiu-se a mente em consciente e inconsciente. A mente consciente é a mente educada, a moderna mente tecnológica — o homem que vai ao escritório todos os dias, que fica entediado, farto de tanta rotina, e a quem falta amor, para fazer as coisas pelo gosto de fazê-las. A mente consciente, a mente mecânica, só pode pensar mecanicamente, funcionar mecanicamente. Todos os seus atos são mecânicos — o sexo, os impulsos, a percepção das coisas, as maneiras — o ser bondoso quando convém, e brutal quando não compensa ser bondoso; observe tudo o que se passa, o estranho fenômeno da moderna civilização. E temos, também, o inconsciente e suas profundezas, que exigem grande capacidade de penetração e compreensão. É possível compreendermos o todo — isto é, tanto o consciente como o inconsciente — imediatamente, num relance; ou podemos nos servir do tempo para analisá-lo, analisar todas as mensagens e sugestões do inconsciente, trazidas pelos sonhos, etc.
Como disse, é possível compreender toda a estrutura da consciência, ou seja "Você", como homem ou mulher, como ente humano, se compreender o todo da consciência de dois milhões de anos; não estamos falando de reencarnação, porém, da consciência do homem, que evolveu do ínfimo estado ao seu estado atual. Todo esse resultado, toda essa estrutura psicológica, social, de avidez, de inveja, de ambição, desespero, pode ser compreendida imediatamente e totalmente eliminada. Ou se pode também analisar, passo a passo, todo o processo da consciência. Entretanto, me parece — me parece, não, assim é de fato — essa análise não libertará a mente. Que poderá então libertar a mente de sua ambição, avidez, da inveja, cólera, ciúme, exigência de poder — que são impulsos animais? Não sei se você já observou os animais. Vá a um aviário e observe como as aves se bicam entre si, e t~em uma certa ordem social estabelecida. Nós também conservamos todos os instintos animais, conscientemente e também inconscientemente. E podemos compreender toda essa estrutura psicológica e nos libertar imediata e totalmente dessas relações humanas baseadas no instinto, nos impulsos animais; imediatamente, pois só assim podemos nos libertar, e não por meio da análise.
Mas, para se compreender essa coisa, essa consciência, precisamos estar real e totalmente livres do medo. O medo é a essência do animal. Mas, para compreendermos o medo, devemos entrar em contato diretamente com ele — mas não verbalmente. Considere seu próprio medo. Você tem medo de alguma coisa, talvez da sua mulher, de seu marido, de seus filhos. Considere seu medo, olhe-o, traga-o para a luz; não procure reprimi-lo, não o aceite nem o rejeite, mas "tome-o nas mãos" e olhe-o! Para olhá-lo, você necessita de uma mente completamente desperta, e não uma mente vaga e indolente. Porque, quando olha o medo, a pessoa ou entra em direto contato com ele, ou vai parar no hospício — como acontece com alguns — ou "sabe" o que deve fazer em relação a ele. E nós o estamos examinando diretamente, não abstrata ou verbalmente; estamos nos colocando diretamente em contato com ele. Dissemos que há várias causas do medo, porém o medo é sempre medo. os objetos de temor e a relação deles com você mesmo poderão variar, mas o medo permanece sempre o mesmo, ainda que se manifeste de diferentes maneiras.
Ora, a maioria de nós não entra em contato com o medo. No momento em que o medo se revela para nós, em qualquer forma, logo tratamos de fugir. Há o medo da morte.[...] Quando você sente medo da morte, todo o seu maquinismo defensivo, psicológico, se coloca imediatamente em movimento; você inventa crenças, tem visões, tem sonhos; mas evita "aquela coisa". Assim, o que se deve perceber em primeiro lugar é que qualquer forma de fuga não só perpetua e fortalece o medo, mas também cria conflito e, por conseguinte, impossibilita a mente de se colocar diretamente em contato com o medo. Suponhamos que este orador sinta medo: ele tem uma certa ideia, uma certa esperança; essa esperança, essa ideia, essa fuga, se torna muito mais importante do que o próprio medo, porque se está evitando o fato, e essa fuga — e não o medo — cria conflito. Quando um homem está diretamente em contato com alguma coisa — não verbalmente, não abstratamente — e sem procurar fugir, não há conflito; ele fica onde está. Só para aquele que tem ideias, esperanças, opiniões, defesas de todo gênero, existe conflito; e esse conflito o impede de entrar em contato direto com o medo.
A maioria das pessoas têm medo e inventaram todo um sistema de fugas: o templo, a incessante atividade da mente inquieta, estúpida; inventaram tantos temores e tantas fugas, que seu conflito se torna cada vez maior. Assim, precisamos estar conscientes do medo, e não indagar "Como fugir?" ou "Como deixar de fugir?" — Porque, quando se compreende que toda forma de fuga ao medo só pode criar mais conflito e, por conseguinte, não há contato direto com o medo (e só o contato direto pode nos livrar dele), quando compreendemos isso — realmente, e não intelectual ou verbalmente, ou como coisa ouvido de outro; quando vemos, por nós mesmos, esse fato, então não fugimos mais. Então o templo, o livro, o líder, o guru mais próximo — tudo isso desaparece. Então, já não se é ambicioso.
A fuga do medo pode ser concreta: o rádio, o templo, atividades. Ou pode se dar por meio de abstrações; quer dizer, a palavra nos ajuda a fugir do medo. [...] O medo não é uma abstração, não é uma palavra; mas, para a maioria de nós, a palavra tonou lugar do fato. Percebe? A palavra "Medo", que é uma abstração, tomou o lugar do fato, que é o medo real, e, por conseguinte, você está em contato com a palavra abstrata e não com o fato.[...] Portanto, você tem que compreender o medo; com "compreender", não quero dizer "compreender verbal ou intelectualmente o medo", porém enfrentá-lo e se livrar dele totalmente.
E isso só é possível quando não há fuga de espécie alguma — fuga por meio de atividades ou por outra forma, ou a fuga por meio da palavra, a qual, para a maioria das pessoas, toma o lugar do fato real. Compreendendo isso, você estará diretamente em contato com o temor. Nesse contato, não há intervalo de tempo, não há dizer "Eu o vencerei" ou "Eu desenvolverei a coragem" (o que também é muito estúpido), quando você sente medo. Isso é proceder como as pessoas que são violentas e vivem falando de não-violência. Isso é muito estúpido, porque não tem validade alguma. O que tem validade é a violência e a ela é que cumpre dar atenção. Mas — falar, dar a volta ao mundo pregando a não-violência, isso é próprio de uma mente hipnotizada, irrealista. Portanto, estamos considerando fatos; mas não podemos nos ocupar com o que é se há qualquer forma de fuga, consciente ou inconsciente.
Há o medo físico. Quando se vê uma serpente, um animal feroz, se sente, instintivamente, medo: é um medo natural, são, normal. Não é medo, porém instinto de conservação — coisa normal. Mas, a autoproteção psicológica — ou seja o desejo de estar sempre seguro — gera medo. A mente que quer estar sempre em segurança é uma mente morta, porque não há segurança, não há permanência nesta vida. E, por causa do seu desejo de estabelecer uma permanência nas relações com sua esposa, com seus filhos, etc., você tem ciúme e aquela coisa terrível que se chama "a família". Quando nos colocamos em contato direto com o medo, há a reação dos nervos, etc. Então, como a mente já não está fugindo por meio de palavras ou de quaisquer atividades, não há separação entre observador e a coisa observada — o medo. Só a mente que trata de fugir se separa do medo. Mas, quando há direto contato com o medo, não há então observador, nenhuma entidade que diz: "Tenho medo". Assim, quando se está em contato direto com a vida, com qualquer coisa, não há separação. É a separação, a divisão, que gera a competição, a ambição, o medo.
Portanto, o importante não é "Como nos livrar do medo?". Se você busca um método ou sistema para se livrar do medo, ficará perpetuamente nas suas garras.
Mas, se compreender o medo — e isso só é possível quando você está em contato com ele diretamente como está em contato com a fome, ou tão diretamente como quando se vê ameaçado de perder o emprego então você age; só então o medo desaparece de todo — o medo em todas as suas formas, e não está ou aquela forma de medo. Porque, da libertação e compreensão do medo, do aprender a respeito do medo, nasce a inteligência, e a inteligência é a essência da liberdade. Mas, não existe inteligência quando há qualquer forma de conflito; e conflito haverá sempre, enquanto houver medo.
Jiddu Krishnamurti, Nova Deli, 1º de Novembro de 1964
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