quarta-feira, 13 de abril de 2016

A educação é uma fábrica de conformistas


[...]Na sala, com sua varanda sobranceira ao rio, que corria uns trinta pés abaixo, um grupo de pais sentara-se no chão sobre um tapete limpo. Todos bem alimentados, trigueiros, asseados, possuíam um ar de fátua respeitabilidade. Tinham vindo como pais para falar sobre o seu relacionamento com os filhos e sobre a educação dos filhos. Nessa parte do mundo a tradição é ainda muito forte. Deviam ter sido todos bem educados, ou melhor, tinham granjeado alguns diplomas em universidades e, no seu entender, ótimos empregos. O respeito estava entranhado neles, não só pelos seus superiores hierárquicos, mas também pelas pessoas religiosas. Isso faz parte dessa hedionda respeitabilidade. O respeito se associa invariavelmente ao desrespeito, à total desatenção pelas pessoas situadas abaixo deles. 

Um deles disse:

— Como pai, eu gostaria de falar sobre meus filhos, sua educação e o que vão fazer. Sinto-me responsável por eles. Minha esposa e eu os educamos com muito cuidado, com tanto cuidado quanto nos foi possível, dizendo-lhes o que deviam e o que não deviam fazer, guiando-os, afeiçoando-os, ajudando-os. Mandei-os para cá, para esta escola e estou preocupado com o que vai acontecer-lhes. Tenho duas filhas e dois filhos. Como pais, minha esposa e eu fizemos o melhor possível e o melhor talvez não baste. Sabeis, senhor, que há uma explosão da população, os empregos estão-se tornando mais difíceis, os padrões educacionais mais baixos, e os universitários entraram em greve porque não querem padrões mais altos de exames. Querem notas fáceis; na verdade, não querem trabalhar nem estudar. Por isso estou preocupado e pergunto a mim mesmo como eu, ou a escola, ou a universidade, poderemos preparar meus filhos para o futuro. 

Outro acrescentou: 

— Este é precisamente o meu problema. Tenho três filhos; os dois meninos estão aqui na escola. Passarão, sem dúvida, em alguma espécie de exame, ingressarão na universidade, e os diplomas que obtiverem nem sequer se aproximarão dos padrões europeus ou americanos. Mas são crianças inteligentes e sinto que a educação que vão receber, não nesta escola, porém mais tarde, lhes destruirá o brilho dos olhos e a vivacidade do coração. Todavia, é preciso que consigam um diploma a fim de encontrar um modo de vida qualquer. Fico extremamente perturbado ao observar as condições deste país, a superpopulação, a pobreza esmagadora, a total incapacidade dos políticos e o peso da tradição. Tenho de casar minha filha; ela deixará o assunto inteiramente aos meus cuidados, pois como poderá saber com quem deve casar? Preciso escolher um marido que lhe convenha e que, com a ajuda de Deus, tenha um diploma e encontre um bom emprego em algum lugar. Não é fácil e estou muito preocupado. 

Os três outros pais concordaram; assentiram com um movimento solene da cabeça. Suas panças estavam cheias; eram hindus até ao âmago, encharcados de mesquinhas tradições e superficialmente preocupados com os filhos. 

Condicionastes com muito cuidado vossos filhos, embora talvez sem compreender a fundo o problema. Não somente vós mas também a sociedade, o meio, a cultura em que foram educados, tanto econômica quanto social, os alimentaram e afeiçoaram segundo determinado padrão. Eles passarão pela experiência da chamada educação. Se tiverem sorte, lograrão um emprego através das vossas manipulações e se instalarão em seus larezinhos com esposas e maridos igualmente condicionados, para levar uma vida monótona e insípida. Mas, afinal de contas, é isso o que desejais — uma posição segura, um casamento para que eles se tornem promíscuos, tendo a religião por ornamento. A maioria dos pais o deseja, não é verdade? — um lugar seguro na sociedade, embora seja uma sociedade corrupta, como eles mesmos estão cansados de saber em seus corações. Isto é o que desejais e para isso criastes escolas e universidades. Dais-lhes certos conhecimentos tecnológicos, que lhes assegurarão a subsistência, e esperais pelo melhor, esquecendo o resto do problema humano ou fechando propositadamente os olhos para ele. Estais preocupado com um fragmento e não tomais em consideração os muitos fragmentos da existência humana. Na realidade, não quereis preocupar-vos, não é assim? 

— Não somos capazes disso. Não somos filósofos, não somos psicólogos, não somos especialistas para examinar as complexidades da vida. Fomos treinados para ser engenheiros, médicos, profissionais liberais e havemos mister todo o nosso tempo e energia para atualizar-nos porque muitas coisas novas estão sendo descobertas. Pelo que dissestes, quereis que sejamos proficientes no estudo de nós mesmos. Não temos tempo, nem inclinação, nem interesse. Passo a maior parte das minhas horas, como todos aqui, num escritório, numa construção ou num consultório. Só podemos especializar-nos num campo e fechar os olhos para o resto. Não nos sobra tempo sequer para ir ao templo: deixamos essa tarefa para as mulheres. Quereis provocar uma revolução, não só em religião mas também em educação. Nisso não podemos ajudar-vos. Eu talvez gostasse de fazê-lo, mas não tenho tempo. 

A gente fica a imaginar se realmente não tendes tempo. Dividistes a vida em especialidades. Separastes a política da religião, a religião dos negócios, o homem de negócios do artista, o profissional do leigo, e assim por diante. Essa divisão é que está atrapalhando, não só no campo da religião mas também no da educação. Vossa única preocupação é fazer que vossos filhos tenham um diploma. A competição está-se acirrando; neste país os padrões da educação estão sendo abaixados e continuais teimando em que não tendes tempo para considerar o conjunto da existência humana. É o que quase toda a gente diz com palavras diferentes. E, portanto, sustentais uma cultura em que haverá uma competição cada vez maior, maiores diferenças entre os especialistas e mais conflito humano e tristeza. É a vossa tristeza, não a tristeza alheia. No entanto, alegais falta de tempo e vossos filhos repetirão a mesma coisa. No Ocidente há revolta entre os estudantes e os jovens; a revolta é sempre contra alguma coisa, mas os que se revoltam são tão conformistas quanto os que lhes inspiram a revolta. Quereis que vossos filhos se conformem: toda a estrutura religiosa e econômica se baseia nessa conformidade. Vossa educação zela por que eles se conformem. Porque esperais, através da conformidade, não ter problemas, acreditais que os problemas só surgem quando há perturbação, mudança. Não percebeis que não é a mudança que gera problemas, mas a própria conformidade. Receais que qualquer alteração do padrão produza o caos, a confusão e, portanto, condicionais vossos
filhos a aceitar as atividades tradicionais; condicionai-los a conformar-se. Os problemas nascidos dessa conformidade são inúmeros. Toda revolução física começa quebrando o padrão físico da conformidade, como na Rússia e na China. Cada qual acredita que, por efeito da sua conformidade, haverá segurança. Com o movimento de conformidade vem a autoridade. Tal como é agora, a educação ensina os jovens a obedecer, a aceitar e a seguir, e os que se revoltam contra isso têm seu próprio padrão de obediência, aceitação e subserviência. Com o aumento da população e com o rápido crescimento da tecnologia, vós, os pais, vos vedes presos numa armadilha de problemas crescentes e incapazes de resolvê-los. A todo esse processo chamais educação. 

— O que dizeis é perfeitamente verdadeiro. Estais expondo um fato, mas que haveremos de fazer? Colocai-vos em nosso lugar. Engendramos filhos, nossos apetites são muito fortes. Nossas mentes foram condicionadas pela cultura em que nos criaram, como hindus ou maometanos e, diante desse enorme problema da vida — que é enorme — viver segundo a vossa sugestão, como seres humanos completos, integrais, é desconcertante. Estamos comprometidos, temos de ganhar a vida, temos responsabilidades. Não podemos retroceder e recomeçar. Estamos realmente presos numa armadilha, como dizeis. 

Mas podeis zelar por que vossos filhos não caiam na armadilha. Essa é a vossa responsabilidade: não os empurrar, através de exames estúpidos, mas diligenciar, como pais, para que, desde a infância, eles não se vejam enredados nos laços armados por vós e pelas gerações passadas. Dai um pouco do vosso tempo à tarefa de mudar o meio, a cultura; fazei que surjam as espécies certas de escolas e universidades. Não encarregueis disso o governo. O governo é tão remisso quanto vós, tão indiferente, tão insensível. Em vez de perpetuar o padrão da cilada, vossa responsabilidade reside em velar por que não haja cilada. Tudo isso significa que deveis estar despertos, não só em vossa profissão ou carreira particulares mas para o imenso perigo de perpetuar a armadilha. 

— Vemos o perigo mas parecemos incapazes de agir, até mesmo quando o vemos. 

Vedes o perigo verbal e intelectualmente, e à visão chamais perigo, o que na realidade não é. Quando o vedes de fato, não teorizais a respeito dele. Não se opõe dialeticamente uma opinião a outra: se vísseis, com efeito, a verdade do perigo, como vedes o perigo de uma cobra agiríeis. Mas recusais-vos a vê-lo porque isso significaria ter de despertar. Há perturbações e elas vos assustam. É o que vos leva a dizer que não tendes tempo, o que obviamente não é verdade.

Dessarte, como pais preocupados, deveis estar total e completamente empenhados em que vossos filhos não caiam na armadilha: por conseguinte criareis diferentes escolas, diferentes universidades, políticas diferentes, maneiras diferentes de conviver, o que quer dizer que precisais cuidar de vossos filhos. O cuidado dos filhos supõe o tipo certo de comida, o tipo certo de roupas, o tipo certo de livros, o tipo certo de divertimentos, o tipo certo de educação; e, portanto, vos preocupais com o tipo certo de educador. O educador é o que menos respeito vos merece. O vosso respeito se dirige para os que têm dinheiro, posição e prestígio, e desprezais de todo o educador, que tem a responsabilidade da geração vindoura. O educador necessita de educação tanto quanto vós, os pais, necessitais dela. 

O sol estava começando a esquentar, as sombras faziam-se mais densas, a manhã se escoava. Debaixo do céu já menos azul, as crianças brincavam no campo, libertas das aulas, das lições repetitivas e da insipidez dos livros.
Jiddu Krishnamurti - Conversações com os pais e com o pessoal de Brockwood Park
Extraído do livro: O Começo do Aprendizado

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"Acredito que o maior presente que alguém me pode dar é ver-me, ouvir-me, compreender-me e tocar-me. O maior presente que eu posso dar é ver, ouvir, entender e tocar o outro. Quando isso acontece, sinto que fizemos contato" — Virginia Satir

"A mente inocente é aquela que não pode ser ferida. Uma mente sem marcas de ferimentos recebidos — eis a verdadeira inocência; temos cicatrizes no cérebro e, com elas, queremos descobrir um estado mental sem ferimento algum. A mente inocente não pode ferir-se (isto é, sofrer ofensa), porque nunca transporta um ferimento de dia para dia. Não há, pois, nem perdão, nem lembrança.[...] A mente em conflito não tem nenhuma possibilidade de compreender a Verdade" — Krishnamurti