sábado, 2 de abril de 2016

As várias faces dos fenômenos abusivos


Quando passei a reconhecer e trabalhar a história da minha infância, comecei com uma definição muito restrita de violação. Com o meu conhecimento limitado e com o meu sistema de negação substancial firmemente cimentado, pensei que o abuso sexual infantil significasse contato genital imposto por um adulto a uma criança. O incesto era o mesmo ato explícito cometido contra crianças por membros mais velhos da família. Fiquei desconfiada, espantada e ultrajada quando me disseram que uma em cada três mulheres e um em cada cinco ou seis homens haviam sofrido abusos sexuais na infância. Como isso é possível? O que isso diz sobre nós como seres humanos? No caso do incesto, como as pessoas podem cometer atos tão horríveis com os seus próprios e valiosos filhos? Que tipo de Deus permitiria tal abominação?

Enquanto continuava a minha própria recuperação da experiência do incesto, comecei a perceber um desenho mais amplo. Comecei a me deixar absorver, sentir e responder à terrível verdade de que existem muitas faces no fenômeno do abuso sexual. Percebi que os chamados atos sexuais disfarçados podem ser tão daninhos para as crianças quanto os atos diretos e abertos. Comecei a entender que eu precisava expandir minha definição de abuso sexual. Há abuso sexual quando um indivíduo tenta impor-se sexualmente a outra pessoa sem o consentimento dela, seja física, emocional ou verbalmente. O abuso sexual inclui um vasto espectro de comportamentos, de atos implícitos como exposição de nudez imprópria ou invasão na atmosfera familiar da sexualidade dos pais, até atos abertos, tais como masturbação mútua e estupro.

De acordo com essa definição ampliada, uma criança que não tem privacidade no banheiro ou a que façam cócegas repetidamente até que chore está sofrendo abusos físicos. Uma menina sujeita a comentários familiares sobre os seus seios ou um jovem que tem de aturar piadas sobre o tamanho do seu pênis está sendo molestado sexualmente. E uma criança que é usada para o prazer sexual de qualquer adulto está sendo molestada sexualmente.

Assim como a minha definição de abuso sexual é muito ampla, acredito que a nossa definição geral de abuso deveria ser igualmente ampla. Anteriormente, neste capítulo, definimos abuso como uma intrusão ativa e daninha além do permitido pelos limites físicos, sexuais, emocionais, intelectuais ou espirituais que definem os indivíduos. O abuso físico significa a violação da integridade física, seja pelo espancamento, seja pelo toque sem permissão. O abuso emocional invade parâmetros emocionais. As pessoas sofrem abusos emocionais quando expostas ao ridículo, a ataques de raiva ou a comentários críticos, sarcásticos. O abuso emocional também ocorre quando a pessoa é repetidamente tratada com recolhimento silencioso ou falta de atenção.

No abuso intelectual, o processo de pensamento é desconsiderado, interrompido ou desencorajado. Por exemplo, quando as ideias ou pensamentos das pessoas são criticadas de maneira destrutiva, quando são julgadas ou punidas duramente por erros de raciocínio, quando lhe dizem de maneira autoritária e rígida como e o que devem pensar, sem espaço para criatividade ou erro, elas estão sofrendo abuso intelectual.

O abuso religioso ocorre quando preceitos, ensinamentos ou rituais religiosos são impostos. Crianças que são forçadas a aceitar os sistemas inflexíveis e austeros dos pais, enquanto a sua própria verdade espiritual é minada ou negada, estão sendo sujeitas a abuso religioso. O mesmo se dá com comunidades que são forçadas a seguir programas teológicos específicos sob ameaça de punição.

O abuso espiritual é diferente do abuso religioso: ele inclui todas as demais formas de abuso. Qualquer um que esteja sendo violado, da maneira que for, está sofrendo abusos espirituais! Se aceitarmos a possibilidade de que as nossas raízes mais profundas são sagradas, que entramos nessa vida "trilhando nuvens de glória", como disse Wordsworth, então, quando abusamos uns dos outros, estamos violando uma parcela sagrada da divindade. Os místicos nos dizem que Deus mora em cada um de nós. Cada um de nós é uma peça preciosa da Personalidade mais profunda encarnada, uma gota temporariamente separada do oceano. Aqueles que egoística e violentamente se impõem aos filhos estão violando a santidade da particularidade destes. Se reconhecemos que somos todos linhas únicas e miraculosas na fábrica da criação, então somos todos partes do mesmo tecido cósmico. Quando violamos outros, também estamos cometendo um ato contra o próprio núcleo do nosso ser, contra a fonte eterna e criativa da nossa existência.

Quando abusamos de alguém, estamos ferindo outro ser humano. Estamos impondo dor. Ferindo ou explorando alguém, engendramos medo e raiva, desespero e inferioridade, confusão, culpa e vergonha. E muitas vezes aqueles que molestamos são os que ostensivamente mais amamos. Quando infligimos sofrimento a outros, assistimos à criação de indivíduos profundamente marcados. Esses indivíduos se tornam adultos que levam dentro de si crianças magoadas e não-reconhecidas. São homens e mulheres vazios, que não têm senso do seu próprio valor e da sua fonte profunda de inspiração. À medida que se aprofunda o seu senso de solidão cósmica, ele se vai cristalizando. É isso, em essência, o abuso espiritual.

Não há nada como o incesto para marcar uma criança tão profundamente, que, mesmo que se esforce muito para se livrar da vergonha, medo, confusão, desconfiança e raiva resultantes, isso levará muito tempo. Ele incute em nós um sentimento de humilhação e ultraje celular. O conselheiro e palestrante John Bradshaw falou sobre a diferença entre culpa e vergonha: quando nos sentimos culpados, sentimos que cometemos um erro; quando nos sentimos envergonhados, sentimos que somos um erro.

Um sobrevivente de incesto ou abuso na infância caminha pela vida sentindo-se um grande erro, como um homem ou mulher-elefante, entre os que parecem intocados - um afastamento da nossa origem de seres que se sabem divinos. Aqueles que têm uma história de abuso muitas vezes se acabam isolando ou recolhendo. Seu afastamento do divino original se deu com a expulsão de uma realidade onde eles poderiam ter tido uma chance, por mais tênue que fosse, de continuar em contato com as origens sagradas. Foram deixados ao relento.

Os mais frequentes temas dos que se estão recobrando do vício são: "Sempre me senti diferente"; "Sempre estive do lado de fora olhando para dentro"; "Nunca me senti em casa, nunca me senti como parte de algo"; "Tenho menos sentimentos que os outros". Ouvi uma pessoa dizer: "Durante anos, achei que fosse adotada porque nunca me senti adaptada à minha família." Outra mencionou que na infância a sua sensação de alienação era tão forte, que durante algum tempo se imaginou um extraterrestre, literalmente de outro planeta, um estranho numa terra estranha. 

Muitos viciados vêm de lares viciados e abusivos. Onde houver uso excessivo de álcool ou drogas, também haverá outras formas de comportamento abusivo. Onde existirem manipulação e controle de membros da família, existirá abuso. Onde houver a dor e o medo que acompanham qualquer tipo de atividade compulsiva, autocentrada, descontrolada, onde houver obsessão por sexo, dinheiro, poder, jogo ou comida, haverá abuso. 

Christina Groff em, Sede de Plenitude - Apego, Vício e o Caminho Espiritual

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"A mente inocente é aquela que não pode ser ferida. Uma mente sem marcas de ferimentos recebidos — eis a verdadeira inocência; temos cicatrizes no cérebro e, com elas, queremos descobrir um estado mental sem ferimento algum. A mente inocente não pode ferir-se (isto é, sofrer ofensa), porque nunca transporta um ferimento de dia para dia. Não há, pois, nem perdão, nem lembrança.[...] A mente em conflito não tem nenhuma possibilidade de compreender a Verdade" — Krishnamurti