Os psicanalistas sabem muito bem que, sob certas circunstâncias, pode demorar muito tempo até que a censura reprimida por trinta, quarenta ou cinquenta anos de uma criança possa ser articulada e vivenciada.
Por essa razão, possivelmente a situação de uma criança pequena e maltratada é ainda pior e suas consequências para a sociedade são ainda mais graves do que a situação de um adulto num campo de concentração. É bem verdade que, às vezes, o ex-prisioneiro do campo se defronta com situações em que sente que nunca poderá superar adequadamente o grande abismo de seu sofrimento anterior e que as pessoas o vêem como incompreensivo, frio, calado, indiferente e até mesmo descrente, mas ele próprio, com raras exceções, não dúvida do caráter trágico de suas vivências. Nunca tentará convencer-se de que a crueldade que lhe foi infligida era uma boa ação nem entender o absurdo do campo de concentração como uma medida necessária para a sua educação; geralmente não tentará compreender os sentimentos que motivaram seus algozes. Encontrará pessoas que passaram pelas mesmas experiências e que com ele irão partilhar seus sentimentos de indignação, ódio e desespero em relação à crueldade sofrida.
Todas essas possibilidades estão ausentes na criança maltratada. Conforme procurei demonstrar com o exemplo de Christiane F., ela fica sozinha com seu sofrimento NÃO APENAS NA FAMÍLIA, MAS TAMBÉM NO PRÓPRIO SELF. E visto que não pode partilhar esse sofrimento com ninguém, não consegue encontrar nem mesmo na própria psique um lugar onde possa chorar suas dores. O colo de uma "bondosa tia" não é criado em seu SELF, e ela permanece com a ideia de que tem de "engolir as mágoas e ser forte". A criança desprotegida e desamparada não encontra asilo no SELF e, mais tarde, ao identificar-se com o agressor, será perseguida em toda parte do mundo.
Alice Miller em,
no princípio era a educação
martinsfontes
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