terça-feira, 3 de maio de 2016

Pode-se dissolver de imediato a adulteração psíquica?

Nós somos o resultado do passado. Nosso pensamento se baseia no dia de ontem e em muitos milhares de dias passados. Somos o resultado do tempo, e todas as nossas reações, todas as nossas atitudes no presente, representam o efeito acumulativo de muitos milhares de momentos, incidentes e experiências. Por consequência, para a maioria de nós o passado é o presente, e isso é um fato inegável. Você — seus pensamentos, suas ações, suas reações — é resultado do passado. Ora bem, o interrogante deseja saber se o passado pode ser apagado imediatamente, isto é, não dentro de certo tempo, porém, imediatamente; ou esse passado acumulado exige algum tempo, até que a mente esteja livre no presente?[...] Já que cada um de nós é resultado do passado, com um fundo de inumeráveis influências, a variarem e a se modificarem constantemente, é possível apagar-se esse fundo sem   se passar pelo  processo do tempo? Isso está claro?[...]

O que é o passado? O que entendemos por passado? Não nos referimos, naturalmente, ao passado cronológico, ao segundo que precedeu, não nos referimos a isso, que é coisa definitivamente acabada. Nos referimos, é claro, às experiências acumuladas, às reações, lembranças, tradições e conhecimentos acumulados, ao nosso depósito subconsciente de inumeráveis pensamentos, sentimentos, influências e reações. Com uma tal bagagem não é possível compreender a realidade, porquanto necessariamente, a realidade não pertence ao tempo: ela é eterna. Por isso, não se pode compreender o eterno com uma mente que é produto do tempo. O interrogante deseja saber se é possível se libertar a mente, ou se é possível que a mente , que é resultado do tempo, subitamente deixe de existir; ou se é necessário que se proceda uma longa série de exames e análises para, desse modo, se libertar a mente de suas acumulações.[...]

Ora, a mente é o nosso cabedal de ideias e experiências; a mente é o resultado do tempo; a mente é o passado, a mente não é o futuro. Ela pode se projetar no futuro; e a mente se serve do presente como de uma passagem para o futuro; por conseguinte, o que quer que faça, seja qual for a sua atividade — ela está sempre presa na rede do tempo. É possível que a mente deixe de existir totalmente, isto é, que o processo do pensamento termine? Ora, é bem certo que há muitas camadas constituindo a mente; o que chamamos consciência tem muitas camadas, cada uma delas relacionada com outra, cada uma dependente da outra e atuando reciprocamente uma sobre a outra; e o total de nossa consciência não é apenas o processo de experimentar, mas também o de nomear, designar e, ainda, armazenar na memória. Tal é o processo completo da consciência, não é?[...]

Quando falamos de consciência, não nos referimos ao processo de experimentar, de nomear ou designar à experiência e guardá-la, dessa maneira na memória? Tudo isso, certamente, em níveis diferentes, constitui a nossa consciência. E pode a mente, que é resultado do tempo, mediante a um processo de análise, chegar, passo a passo, a se libertar da experiência acumulada? Ou é possível ficar-se inteiramente livre do tempo e contemplar-se diretamente a realidade?[...] Esta questão, é realmente importante, pois é possível, como logo explicarei, ficarmos livres da experiência acumulada e, assim, renovarmos imediatamente a nossa vida, sem dependermos do tempo, recriar-nos prontamente, independente do tempo.[...]

Para ficarmos livres da experiência acumulada, dizem muitos analistas que devemos examinar cada reação, cada complexo, cada empecilho, cada obstáculo, o que necessariamente implica em processo de tempo; e significa, também, que o analista tem de compreender o que está analisando; e que não deve interpretar erroneamente aquilo que está analisando. Porque, se o interpretar falsamente, tal interpretação o levará a conclusões errôneas, com o que se constituirá um novo acervo mental.[...] Por consequência, o analista precisa ser capaz de analisar os seus pensamentos, sem o mais leve desvio; e não deve errar um só passo, na sua análise, porquanto qualquer passo em falso, qualquer conclusão errônea, significa a formação de um novo fundo mental de ordem diferente e em nível diferente. E surge, também, o seguinte problema: Será o analista diferente da coisa analisada? Não representam o analista e a coisa analisada um fenômeno conjunto?[...]

Indubitavelmente, o indivíduo que experimenta e a sua experiência constituem um fenômeno conjunto, não são dois processos separados. Vejamos, pois, em primeiro lugar, a dificuldade de analisar. É quase impossível analisar tudo o que se contém em nossa consciência e ficar-se livre, por um tal processo. Porque, afinal de contas, quem é o analista? O analista não é diferente da coisa analisada, embora assim o pense. Pode separar-se da coisa que analisa, mas sempre faz parte dela. Tenho um pensamento, tenho um sentimento, sinto, por exemplo, cólera. A pessoa que analisa a cólera faz parte, ainda, da cólera; por conseguinte, o analista e a coisa analisada constituem um fenômeno conjunto, e não duas forças ou processos separados. Assim, pois, a dificuldade de nos analisarmos, de nos descerrarmos, de olharmos a nós mesmos, página por página, observando cada reação, cada resposta, é incalculável e exige muito tempo.[...] Portanto, essa não é a maneira indicada para nos libertarmos do complexo de nossos sentimentos.[...] Deve, portanto, haver uma maneira de proceder mais simples e direta; é o que vamos verificar. Mas, para o verificarmos, precisamos abrir mão de tudo o que é falso. A análise, pois, não é o processo correto e devemos abandoná-la. Assim como você não tomaria um caminho que não leva a parte alguma, assim também cumpre evitar o processo de análise, que não o levará a parte alguma; ele está, por conseguinte, fora de seu sistema. 

O que lhe resta, então?[...] O observador que observa — sendo o observador e a coisa observada um fenômeno conjunto — o observador que observa e procura analisar a coisa observada, não conseguirá se libertar do seu acervo mental. Se é assim — e de fato é — você deve abandonar tal processo, não?[...] Ao perceber que tal método é falso, ao compreender, não apenas verbalmente, porém, realmente, que é falso esse processo, o que acontece, então, à sua análise? Você desiste de analisar, não é verdade? Então, o que lhe resta?[...] Se a análise não é o método correto, o que lhe resta ainda? Qual é o estado da mente habituada a analisar, pesquisar, perscrutar, dissecar, tirar conclusões, etc.? Qual é o estado de sua mente se esse processo se detém? 

Você diz que a mente fica vazia. Pois bem: continue a penetrar nessa mente vazia. Por outras palavras, ao jogar fora, como falso, o que é conhecido, o que acontece à sua mente? Afinal de contas, o que foi que você jogou fora? Jogou fora o falso processo resultante de seus acervo de ideias e experiências. Não é assim? De um só golpe, por assim dizer, jogou fora tudo isso. Por conseguinte, a sua mente, depois de rejeitar o processo analítico e tudo o que ele implica, e de o reconhecer como falso, fica liberta do "ontem", sendo, assim, capaz de observar diretamente, sem passar pelo processo do tempo, com o que se desfaz, imediatamente, do seu acervo de ideias e experiências. 

[...] O pensamento é resultado do tempo, não é verdade? O pensamento é resultado do ambiente, de influências sociais e religiosas, e tudo isso faz parte do tempo. Pois bem: pode o pensamento ficar livre do tempo? Isto é, o pensamento, que é resultado do tempo, pode parar e ficar livre do processo do tempo? O pensamento pode ser controlado, modelado; mas o controle do pensamento está ainda compreendido nos domínios do tempo, e, por isso, a nossa dificuldade é a seguinte: Como pode uma mente, que é resultado do tempo, de milhares de dias passados, ficar   livre, instantaneamente, desse complexo acervo de influências? E a verdade é que você pode se libertar de tal acervo, não amanhã, porém no presente, no agora. Só é possível isso ao perceber aquilo que é falso; e o falso é, obviamente, o processo analítico, e este é a única coisa que temos. Cessando de todo o processo analítico, não mediante compulsão, porém pela compreensão da inevitável falsidade desse processo, você verá então que a sua mente  ficará completamente dissociada do passado — o que não significa que você deixará de reconhecer o passado, porém, que a sua mente não terá mais comunhão direta com o passado. Pode, portanto, a mente se libertar, imediatamente, do passado, e essa dissociação do passado, essa completa libertação do ontem — psicologicamente e não cronologicamente — é possível, e essa é a única maneira de se compreender a realidade. 

Agora, expressando-o de maneira muito simples; quando você deseja compreender uma coisa, qual é o estado da sua mente? Quando deseja compreender o seu filho, quando deseja compreender alguém, ou alguma coisa, qual é o estado da sua mente? Você não fica analisando, criticando, julgando o que o outro está dizendo, fica apenas escutando, não é verdade? Sua mente se acha num estado em que o processo do pensamento está inativo, porém muito atento. Isso é exato? E essa atenção não se relaciona com o tempo. O que você está e, simplesmente, alertado, passivamente receptivo, mas ao mesmo tempo plenamente atento; e é só nesse estado que há compreensão. Naturalmente, quando a mente está agitada, interrogando, afligindo-se, dissecando, analisando, não há compreensão. E quando há o desejo ardente de compreender, a mente está evidentemente tranquila. Isto naturalmente você terá de experimentar, e não deve aceitá-lo somente porque estou dizendo. Mas é fácil verificar que quanto mais você analisa, tanto menos compreende. Você pode compreender certos fatos, certas experiências; mas não é possível esvaziar a consciência de todo o seu conteúdo, por meio do processo analítico. Só é possível isso ao perceber a falsidade do método analítico. Ao reconhecer o falso como falso, começará a ver o que é verdadeiro; e a verdade é que o libertará das influências do passado. Para perceber essa verdade, deve a mente desistir de ser analítica, não deve ficar presa ao processo do pensamento, que, evidentemente, é análise, o que nos conduz a outra questão inteiramente diferente, ou seja: O que é a meditação correta? — da qual trataremos noutra ocasião. 

Jiddu Krishnamurti em, O que te fará feliz
23 de janeiro de 1949

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"Acredito que o maior presente que alguém me pode dar é ver-me, ouvir-me, compreender-me e tocar-me. O maior presente que eu posso dar é ver, ouvir, entender e tocar o outro. Quando isso acontece, sinto que fizemos contato" — Virginia Satir

"A mente inocente é aquela que não pode ser ferida. Uma mente sem marcas de ferimentos recebidos — eis a verdadeira inocência; temos cicatrizes no cérebro e, com elas, queremos descobrir um estado mental sem ferimento algum. A mente inocente não pode ferir-se (isto é, sofrer ofensa), porque nunca transporta um ferimento de dia para dia. Não há, pois, nem perdão, nem lembrança.[...] A mente em conflito não tem nenhuma possibilidade de compreender a Verdade" — Krishnamurti