A grande massa de homens e mulheres dá preferência ao caminho menos eivado de aventuras das rotinas tribais e cívicas comparativamente inconscientes. Mas esses peregrinos também são salvos — em virtude dos auxílios simbólicos herdados da sociedade, os rituais de passagem, os sacramentos geradores de graça, dados à humanidade antiga pelos redentores e mantidos ao longo dos milênios. Apenas àqueles que não conhecem nem um chamado interno, nem uma doutrina externa, cabe verdadeiramente um destino desesperador; falo da maioria de nós, hoje, nesse labirinto fora e dentro do coração. Ai de nós! Onde está a guia, essa afetuosa virgem, Ariadne, para nos fornecer a palavra simples que nos dará coragem para enfrentar o Minotauro e, depois, os meios para encontrarmos nosso caminho para a liberdade, quando o monstro (de nossa infância*) tiver sido encontrado e morto?
Ariadne, filha do rei Minos, apaixonou-se pelo belo Teseu no momento em que o viu deixar o barco que levara o infeliz: grupo de rapazes e moças atenienses para o Minotauro. Ela conseguiu falar com ele e declarou que lhe forneceria um meio para ajudá-lo a sair do labirinto, desde que ele prometesse levá-la de Creta e casar-se com ela. A promessa foi feita. Ariadne procurou então a ajuda do habilidoso Dédalo, cuja engenhosidade havia construído o labirinto e havia permitido que sua mãe desse à luz o seu habitante. Dédalo lhe deu simplesmente um rolo de fio de linho, que o herói visitante deveria prender à entrada e ir desenrolando à medida que entrasse no labirinto. Na verdade, precisamos de muito pouco! Mas, se não tivermos esse pouco, a aventura no labirinto não nos dará esperança. Esse pouco está ao alcance da mão. É muito curioso que o próprio cientista, que, a serviço do rei pecador, foi o cérebro criador do horror representado pelo labirinto, possa servir, com a mesma prontidão, aos propósitos de liberdade. Mas o herói-coração deve estar disponível. Durante séculos, Dédalo representou o tipo do artista-cientista: aquele fenômeno humano, curiosamente desinteressado e quase diabólico, que está além das fronteiras normais do julgamento social, dedicado à moral da sua arte, e não à moral do seu tempo. Ele é o herói do caminho do pensamento — de bom coração, dotado de coragem e cheio de fé no fato de que a verdade (de nossa infância*), tal como ele a conhece, nos libertará.
E assim podemos nos voltar para ele, tal como o fez Ariadne.
A matéria-prima para o seu fio de linho foi colhida nos campos da imaginação
humana. Séculos de agricultura, décadas de diligente seleção e o trabalho de
numerosos corações e mãos entraram na colheita, na separação e na fiação desse
fio resistente. Além disso, nem sequer teremos que correr os riscos da aventura
sozinhos; pois os heróis de todos os tempos nos precederam; o labirinto é
totalmente conhecido. Temos apenas que seguir o fio da trilha do herói. E ali
onde pensávamos encontrar uma abominação, encontraremos uma divindade; onde
pensávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos; onde pensávamos viajar para o
exterior, atingiremos o centro da nossa própria existência; e onde pensávamos
estar sozinhos, estaremos com o mundo inteiro.
Joseph Campbell em, O Herói de Mil Faces
(* não consta do texto original)
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